MOTIVO DE MEDITAÇÃO
Neste tempo de Quaresma, ouvir a Sinfonia nº 2 de Mahler (1860-1911), à qual o autor daria o título de “Ressurreição”, constitui motivo de intensa meditação (Coro e Orquestra Gulbenkian, Maestro David Afkhan). Estamos no centro do Mistério Cristão e o grande compositor fez questão de pôr nesta sua obra o essencial do caminho que o levaria à conversão (1897). Sendo certo que a estreia é de 1895 em Berlim, a verdade é que a versão final é de 1903 – abrangendo o resultado da evolução pessoal. De facto, a ideia nasceu quando Gustav Mahler ainda estava a escrever a primeira sinfonia, no final dos anos oitenta, sentindo necessidade de dar uma identidade própria aos temas que agora se encontram, numa das obras-primas da música de sempre. Pode dizer-se, aliás, que esta segunda sinfonia acompanha o caminho espiritual do seu autor, verificando-se que no início se nota angústia e sofrimento, que vão evoluindo gradualmente no sentido de uma espiritualidade libertadora. Eduardo Lourenço dirá: “Mahler começa a grande oração da nossa Ausência que é ao mesmo tempo a de uma Busca como esta que desenrola os seus desertos e as suas reversíveis imagens neste mar de música em alma sem orla imaginável” (Tempo da Música, Música do Tempo, Gradiva, 2012, p. 54). E este dilema desenvolve-se numa procura determinante. Na parte final, a soprano diz-nos: “Ah, crê: não nasceste em vão / Não foi em vão que viveste, sofreste”. Ao que coro e contralto respondem: “O que foi criado tem de perecer! / O que pereceu ressuscitará! / Para de tremer! / Prepara-te para viver!”. E assim o compositor antecipa o momento final, em que, depois das naturais dúvidas, inerentes à própria natureza da fé, o coro proclama triunfalmente: “Com asas, que para mim ganhei, / Desaparecerei! / Morrerei para poder viver!”. Aqui estamos no momento crucial do próprio percurso individual do autor, que se implica diretamente na consideração da obra como uma ilustração do percurso existencial. “Ressuscitarás, sim, ressuscitarás, / Meu coração, num instante! / Aquilo por que lutaste / A Deus te levará!”.
DA DÚVIDA À ESPERANÇA
O começo da Sinfonia nº 2, segundo o próprio Mahler tem a ver com a meditação exasperada sobre a condição mortal da humanidade. Eis por que encontramos pontos de contacto com a terceira sinfonia de Beethoven (“Eroica”) – uma marcha fúnebre contrasta com a perspetiva lírica. Com um extremo cuidado técnico, graças a um complexo e hábil recurso a dissonâncias harmónicas, encontramos a coexistência do sofrimento e da esperança… Depois, temos uma inocente e nostálgica visão do passado individual do herói – e a alegria vai contrastando com a ideia de morte. Um ambiente campestre e idílico evolui no sentido de uma visão incerta e perplexa sobre a vida De que valerá algo que está condenado a desaparecer e é estéril? E G. Mahler recorre a material relacionado com a canção do “Sermão de Santo António aos Peixes” (1893) – para salientar como o santo, perante a indiferença e a incapacidade de as pessoas ouvirem o que quer que fosse, se dispõe a falar aos peixes (“O bom Deus enviar-me-á uma pequena luz”…). Lembramo-nos deste tema, bastamente glosado pelo Padre António Vieira. E assim chegamos ao quarto andamento, em que o compositor insiste no desejo de libertação dos dramas humanos em direção à transcendência. À complexidade anterior sucede uma maior simplicidade (enquanto clareza na expressão) que, no entanto, é produzida por uma orquestração muito cuidada, apenas possível graças à grande capacidade inovadora de se autor. Dir-se-ia que estamos perante uma autêntica depuração espiritual, em que o sofrimento e a angústia iniciais dão lugar a uma paz de espírito, que não deixa de conter no seu íntimo toda a diversidade de um sentimento pleno de tensões contraditórias. É por isso que a Sinfonia nº 2 de Mahler tem hoje tanto sucesso (que no início não foi claro) – de facto, há na mesma obra não apenas a presença da personalidade complexa e riquíssima em termos espirituais de Mahler, mas também a capacidade revelada por um artista genial, capaz de usar uma panóplia inesgotável de meios artísticos ao serviço de uma forte emancipação humana. E assim no final da sinfonia temos a recapitulação do caminho percorrido: o ambiente fúnebre do começo, o tema “Dies Irae”, que corresponde à consciência da pequenez e da imperfeição, a que sucede a marcha orquestral que ilustra a procissão para o “Juízo Final”, até que soa a última trombeta do Apocalipse. E assim dá-se início à cantata sinfónica final, já aqui referenciada – com o poema “Ressurreição” de Friedrich G. Klopstock (1724-1803), grande poeta anunciador do romantismo – num extraordinário crescendo que representa a afirmação do autêntico júbilo, assumido como força vital pelo compositor, num momento crucial da sua vida atribulada, em nome de uma esperança forte e renovadora.
Guilherme d’Oliveira Martins
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