Vivemos um transe difícil de desaparecimentos e de desencontros. Continuamos a invocar os amigos que se despedem inesperadamente, quando a conversa ainda ia a meio. Num dos últimos textos que escreveu, Maria de Lourdes Pintasilgo – que nos deixa, uma semana depois de Sophia, com uma imensa saudade – levava-nos a considerar a poesia e a cidadania como as duas faces de Jano. No fundo, Maria de Lourdes considerava essas duas facetas como complementos naturais e incindíveis. E se bem nos lembramos, sem transigências, Sophia de Mello Breyner fez sempre da busca da liberdade e da justiça a chave da sua peregrinação interior poética. Sem que a linguagem fosse alguma vez ofuscada pelo empenhamento pessoal em busca do outro e do comum. Um país liberto/ Uma vida limpa/ Um tempo justo. Sophia nunca foi indiferente à cidade e ao tempo, onde procurou a eternidade. E, como escreveu Maria de Lourdes Pintasilgo, “não é só o mundo grego que exprimem estas palavras. É também, e talvez até, anterior a tudo o mais, a consciência da navegação do eu: Eu me busquei no vento e me encontrei no mar/ E nunca/ Um navio da costa se afastou/ Sem me levar. Mas, de repente, a sua palavra faz-se denúncia e a menina do mar torna-se violenta nas palavras: Com fúria e raiva acuso o demagogo/ E o seu capitalismo das palavras. Em Sophia, a palavra faz a pessoa, molda o povo, trás com ela história e sonho. Não hesita em dizer que: De longe muito longe/ O homem soube de si pelas palavras/ E nomeou a pedra, a flor, a água/ E tudo emergiu porque ele disse”. De facto, “Sophia é ao mesmo tempo o dom e a beleza absoluta” (Público, Mil Folhas, 10.7.04). Maria de Lourdes Pintasilgo invocou Sophia de Mello Breyner pouco antes de morrer. Simbolicamente, ficou essa meditação como um misto de homenagem e de testamento individual. Maria de Lourdes teve uma vida intensa. Foi pioneira nas causas sociais, na cultura da paz, no lançamento das bases de uma cultura ecuménica. Nos anos cinquenta, com Adérito Sedas Nunes, renovou o pensamento da Igreja, antecipando o espírito do Concílio Vaticano II. Foi Primeira-Ministra, participou nos areópagos internacionais na reflexão sobre as bases de uma nova ordem internacional… Era uma militante. Ainda há uma semana fizera questão de exprimir a sua admiração pela obra poética de Sophia. Agora, no funeral, muitos poemas de Sophia foram lidos e relidos. “O que a Sophia diz está sempre certo!”. Pedro Tamen recordou há pouco a afirmação peremptória e indiscutível de Ruy Cinatti. Era assim, de facto, com as palavras medidas, de lugar irrepreensível, sempre em busca dos arquétipos divinos – uma procura do tempo permanente, do que dura para além do imediato, das cidades imaginárias e das fronteiras virtuais. Num tempo de tantos desencontros, fica destes dias a memória de duas mulheres, tão diferentes, mas que ilustram a ligação íntima entre a poesia e a cidade.
Guilherme d’Oliveira Martins