CERVANTES EM PORTUGAL
Miguel de Cervantes Saavedra tem a ver com Portugal muito mais do que à primeira vista possa parecer. E poderemos dizer que é, com o nosso Fernão Mendes Pinto, o criador do romance moderno, em que a vida se torna presente na narrativa, para além da edificação ou de uma perspetiva distanciada da singularidade. E assim o picaresco surge como uma arma crítica, nem sempre foi entendida, como aconteceu com o nosso autor da «Peregrinação», que passou por mentiroso, apenas porque se multiplicou nas diversas personagens da sua obra. Também Cervantes usou a ironia para fazer a crítica severa de quantos se deixaram prender pelo passado, em vez de assumir o novo tempo. Como disse Emilio Castelar: «os livros de cavalaria são o protesto contra o feudalismo e Cervantes a grande estátua que coroa o Renascimento». Esta é a epígrafe que inicia pequeno opúsculo de 1872, «Cervantes e Portugal – Curiosidade Literária» por Carlos Barroso, que nos apresenta as curiosas ligações do autor de «Quixote» à nossa cultura. São elementos conhecidos, mas tantas vezes pouco lembrados, que importa revisitar. Antes do mais, Cervantes lembra-nos a batalha de Lepanto (1571), em que foi seriamente ferido. Esse acontecimento histórico, em que a armada comandada por João de Áustria, com participação portuguesa, venceu os turcos, marcou (menos do que se esperaria, por razões diplomáticas) a história europeia – tendo até animado o nosso D. Sebastião a partir para Alcácer-Quibir, com os trágicos resultados conhecidos. Em 1581, com a questão dinástica portuguesa solucionada, encontramos Miguel de Cervantes em Lisboa com Filipe I, esperando favores deste, mas profundamente enamorado. No entanto, a filha natural Isabel Saavedra, da relação com Ana Villafranca, nascerá em Espanha só em 1584, já não sendo desse tempo. Foram os amores no período português que o inspiraram na novela pastoril «Galatea» (1585), onde o autor aparece disfarçado de pegureiro Lauso, suspirando pela formosa pastora Silena. E dirá: «Para festas Milão, para amores a Lusitânia». Em «Galatea» o pai da heroína das margens do aurífero Tejo, tenta prendê-la a um «pastor lusitano das ribeiras do deleitoso Lima». Cervantes teria ainda acompanhado o marquês de Santa Cruz na tomada dos Açores (1582-1583), que invoquei aqui há meses, a propósito de uma inesquecível visita ao palácio madrileno do meu amigo Álvaro de Santa Cruz…
DESCOBERTA DA VEIA CRIADORA
Em Lisboa, Cervantes descobre a sua veia criadora, designadamente no teatro, e a verdade é que o ambiente português entusiasma-o. Leia-se com atenção o romance do Cavaleiro da Triste Figura. Aí está o elogio do Tejo português, a beijar as praias da cidade de Lisboa de areias douradas. No célebre capítulo 6º, onde se trata de exorcizar a imaginação doentia dos romances de cavalaria na biblioteca do engenhoso fidalgo, além da salvação de «Amadis de Gaula», o primeiro publicado na Península, que tanto tem a ver com Portugal (pois a versão de Montalvo, que é a referida por Cervantes, teria sido antecedida pela versão portuguesa de Vasco de Lobeira, cavaleiro de Aljubarrota, ou de João de Lobeira), temos a referência ao «Palmeirim de Inglaterra», atribuído a um discreto rei de Portugal, e «Os Sete Livros de Diana» de Jorge de Montemor. E sobre Dulcineia fala-se de famílias célebres de Portugal como os Alencastros, Pallas e Menezes… O pastor Lope Ruiz, que é invocado por Sancho na fuga de seu amo de Torrealva, detém-se nas margens do Guadiana antes de passar seu rebanho para Portugal. Rio que entra «pomposo e grande» em Portugal. Entretanto, na profunda e tenebrosa cova de Montesinos promete o «Caballero de los leones» à sua fantástica amante, «andar por causa dela as sete partidas do mundo com mais pontualidade que o infante D. Pedro de Portugal». Já ao cónego de Toledo, o Cavaleiro da Triste Figura lembra o célebre Juan de Merlo, valente lusitano que foi à Borgonha, enchendo-se de honra e fama nos combates em que se envolveu. E uma das éclogas que foram representadas pelas pastoras, em cujas redes se embaraçou o pensativo Quixote a sonhar com Dulcineia, era nem mais nem menos do que da autoria de Camões. Nas «Novelas Exemplares» encontramos diversas referências – aos navios portugueses vindos das Índias Orientais em «Espanhola inglesa», a um português que pintava as barbas em «O licenciado Vidriera», em «A força do sangue» alguém procura dissimular-se falando meio português meio castelhano, em «Colóquio de los perros», «Berganza vitupera os que falando mal o latim introduzem sua ruim linguagem (…) como os portugueses fazem com os pretos da Guiné», no «Casamento enganoso» refere-se uma vestimenta feminina mais larga do que «sobrepeliz de um canónico português»…
EM LISBOA, VINDOS DA ORIENTAL ÍNDIA
Em «Os Trabalhos de Persiles e Sigismunda», onde se relata a longa viagem de dois príncipes nórdicos que se fazem passar por irmãos (1517), Cervantes relata o desembarque dos viajantes na praia de Belém e enche Lisboa de encómios: «aqui o amor e a honestidade se dão as mãos»; «todos os seus moradores são agradáveis, são corteses, são liberais e são enamorados, porque são discretos: a cidade é a maior da Europa e a de maiores tratos; nela se descarregam as riquezas do Oriente e a partir dela se repartem pelo universo»; «a formosura das mulheres admira e enamora, a bizarria dos homens pasma, e como dizem: esta é a terra que dá ao céu santo e copiosíssimo tributo»… E em «Viagem do Parnaso» chegam poetas a Lisboa da oriental Índia… Dir-se-ia que Unamuno vê plenamente confirmado na obra de Cervantes que a cultura portuguesa é uma aliança entre o lirismo e a história trágico-marítima… Em Quixote o autor de «Sentimento Trágico da Vida» vê um fundo ibérico, apesar das diferenças. Garrett põe Quixote no âmago do conflito das «Viagens». Afinal, há dois Quixotes – um que continua a viver na sua loucura e outro que baixou aos infernos e entrou neles, de partida para o paraíso, de lança em riste a libertar os condenados todos, gritando «viva a esperança». Unamuno acrescenta: «E Deus riu-se paternalmente dele e esse riso divino encheu de felicidade eterna a alma»… Quixote como elo ibérico vem à lembrança, quando o mestre de Salamanca recorda o comentário de Guerra Junqueiro sobre o Cristo sofrido na arte espanhola e a Divindade descida ao convívio dos povos nas coloridas romarias portuguesas… E Antero de Quental leva-nos à lembrança de que a vida é uma tragédia para os que sentem e uma comédia para os que pensam – sendo mais digno o destino terrível mas nobre dos sentimentais do que o fim miserável e cómico dos racionais… O vitalismo de Ortega vai até à consciência quixotesca. Alonso Quijano no leito de morte revela essa dualidade, desde o interior, consciente da loucura e do sonho, até à sementeira emancipadora (essencial para Unamuno ou para Maria Zambrano) que «pousará no deserto e dará origem a um cedro gigantesco que com as suas cem mil léguas cantará hossanas ao Senhor da vida e da morte»…
Guilherme d’Oliveira Martins
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