SÍMBOLO DA SUA GERAÇÃO
Mário de Sá-Carneiro (1890-1916) é um símbolo da sua geração, porventura como Antero de Quental foi sinal da geração de 1870. Ressalvadas as diferenças, a verdade é que, como Eduardo Lourenço tem evidenciado, há uma articulação necessária entre os momentos renovadores do «Cenáculo» e do «Orpheu». Ambos foram movimentos de abertura ao futuro. Recordamo-nos do que disse Fernando Pessoa: «Génio na arte, não teve Sá-Carneiro nem alegria nem felicidade nesta vida. Só a arte, que fez ou que sentiu, por instantes, o turbou de consolação. São assim os que os Deuses fadaram seus. Nem o amor os quer, nem a esperança os busca, nem a glória os acolhe. Ou morrem jovens, ou a si mesmos sobrevivem, íncolas da incompreensão ou da indiferença. Este morreu jovem, porque os Deuses lhe tiveram muito amor». Assim se exprimiu no número 2 de «Athena», a revista de Arte dirigida pelo próprio Pessoa e por Ruy Vaz, em novembro de 1924, quando os ecos de «Orpheu» pareciam apagados da memória imediata. E, ciente de que a penumbra era momentânea, acrescentava: «Mas para Sá-Carneiro, génio não só da arte mas da inovação nela, juntou-se, à indiferença que circunda os génios, o escárnio que persegue os inovadores, profetas, como Cassandra, de verdades que todos têm por mentira. “In qua scribebat, barbara terrafuit”. Mas, se a terra fora outra, não variara o destino. Hoje, mais que em outro tempo, qualquer privilégio é um castigo. Hoje, mais que nunca, se sofre a própria grandeza. As plebes de todas as classes cobrem, como uma maré morta, as ruínas do que foi grande e os alicerces desertos do que poderia sê-lo. (…) A glória é dos gladiadores e dos mimos. (…) Nada nasce de grande que não nasça maldito, nem cresce de nobre que se não definhe, crescendo. Se assim é, assim seja! Os Deuses o quiseram assim».
UMA BIOGRAFIA ATRIBULADA
Conhecemos a biografia atribulada do autor de «Confissão de Lúcio», e o certo é que a sua originalidade e o seu génio tiveram a ver com a extraordinária convergência de fatores e influências que permitiram tornar-se um caso singular e irrepetível, não identificável com uma escola, mas ele mesmo marco fundamental do seu tempo. Se Fernando Pessoa teve necessidade (e o talento extraordinário) para se dividir em diversos heterónimos, para conquistar também o seu lugar único, Mário Sá-Carneiro pôde tornar-se exemplo de uma maturidade especial do simbolismo, em subtil aproximação do vanguardismo, o que levou Pessoa a falar do poema «Manucure», como semifuturista… «Na sensação de estar polindo as minhas unhas, /Súbita sensação inexplicável de ternura, / Tudo me incluo em Mim – piedosamente…». «Ó beleza futurista das mercadorias»… Fernando J. B. Martinho fala-nos, assim, de «um poeta que leva a um ponto paroxístico, de quase rutura, a herança simbolista, facilmente reconhecível em diversos aspetos da sua fulgurante imagética, ao mesmo tempo que submete a sintaxe a surpreendentes procedimentos de estranhamento por via, em regra, de insólitos regimes verbais». Se na forma preserva o simbolismo de um modo requintado, na substância assume os novos temas do século e do mundo, em especial no tocante à chamada «cisão do sujeito», tão presente no universo pessoano. «Eu não sou eu nem sou o outro, / Sou qualquer coisa de intermédio; / Pilar da ponte do tédio / Que vai de mim para o Outro». E aqui encontramos a arte em contacto com o drama insustentável da vida, a ponto de conduzir o poeta à decisão final e absurda do suicídio, nos termos conhecidos… «Eu não me mato por coisa nenhuma: eu mato-me porque me coloquei pelas circunstâncias – ou melhor: fui colocado por elas, numa áurea temeridade – numa situação para a qual, a meus olhos, não há outra saída. Antes assim» (31 de março de 1916, Carta a Fernando Pessoa).
INCOMPREENSÃO E INCONFORMISMO
Pode dizer-se, assim, que Sá-Carneiro torna-se ele-mesmo, marca do inconformismo da sua geração tão incompreendida até tão tarde… Como que se sente o anúncio de um século trágico, que, para muitos, parecia anunciar-se como um momento mágico de criatividade, de sortilégio e de gozo supremo da Arte. É certo que quando Sá-Carneiro decidiu partir já havia guerra e o horizonte já se tinha toldado, daí que tudo parecesse convergir num sentido insustentável. É difícil de explicar. A «coisa nenhuma» que confessa a Pessoa significa tudo e nada. Que é a «áurea temeridade»? É a estranha convergência entre as circunstâncias singulares e o estado do mundo. O drama existencial anuncia-se e concretiza-se… O século trágico assume a contradição suprema: as condições da liberdade e da razão tornam-se subitamente condições de servidão e de domínio… E assim José Régio (numa interpretação fulgurante) considerou Mário de Sá-Carneiro um mediador por excelência relativamente a Fernando Pessoa. Em «Mário ou Eu-Próprio – o Outro» essa especial ligação é feita. Eugénio Lisboa ou Luciana Stegagno Picchio referem-no com especial ênfase. E Régio explica-o: aí pretende «dar um conflito que aliás é intemporal e inespacial no homem; pertence ao homem de qualquer país ou tempo: o do Homem Espiritual (o Outro) com o homem vulgar do quotidiano terreno e animal. Alargando um pouco mais: o conflito do Perfeito (ou do Sonho da Perfeição) com o imperfeito lamentável. E ao mesmo tempo este ama e odeia Aquele, e Aquele despreza, ama e persegue este. Lembremo-nos de que Mário de Sá-Carneiro era feio e amava a Beleza. Quando Mário resolve suicidar-se, o Outro rouba-lhe tal suicídio ainda demasiado terreno, – e transforma-o num sacramento: Envenena-o (mata a imperfeição) com o próprio sangue do Espírito. Há aqui uma reminiscência da Ceia em que Cristo dá a beber aos discípulos o vinho que transformou o seu próprio sangue» (carta a Maria Júlia de Azevedo Lima, 22-11-1963). Pode dizer-se, pois, que José Régio ao assumir esta proximidade relativamente ao poeta, fá-lo dando-lhe um lugar privilegiado na história de «Orpheu» e na literatura portuguesa. Talvez esteja aqui a chave para podermos compreender uma fugaz manifestação do génio!