A Vida dos Livros

De 1 a 7 de maio de 2017.

A publicação em curso da Obra Completa de Maria Helena da Rocha Pereira pela Fundação Calouste Gulbenkian e pela Universidade de Coimbra constitui a melhor homenagem que pode ser prestada à grande mestra dos Estudos Clássicos.

UM DIÁLOGO PERMANENTE COM OS CLÁSSICOS

“Quando se menciona, pela primeira e única vez na Odisseia, a possibilidade de um homem continuar a existir numa região privilegiada, a que se dá o nome de Campos Elísios, as palavras que traduzem esse pensamento dão claro testemunho da antiguidade da crença. Ao lado desta existiam outras, de que algumas perderam o significado no volver dos anos, entrando depois na mitologia sob uma rubrica diferente, e outras pela sua semelhança, vieram a confundir-se inextricavelmente com a mais antiga versão que conhecemos”. Este o ponto de partida da Dissertação de Doutoramento de Maria Helena da Rocha Pereira – Concepções Helénicas de Felicidade no Além, de Homero a Platão (1955) -, cuidadosamente preparada em Oxford, graças à orientação e magistério dos Professores Carlos Ventura, em Coimbra, e E. R. Dodds, em Inglaterra. Ao lermos hoje esse texto (irrepreensível exemplo do excelente domínio da língua portuguesa) referencial para os estudiosos da cultura clássica, compreendemos a especial paixão da autora pelos antigos, com quem gostava de dialogar permanentemente, na base de uma evidente proximidade histórica e humana. De certo modo, somos contemporâneos dessa gesta antiga, que nos configura culturalmente – na língua, nos valores, nas mentalidades. Isso nos ensinou a Mestra de muitas gerações, presentes e futuras. E essa relação não era fantasmática, mas palpável, uma vez que os testemunhos literários dão veracidade e verosimilhança à relação com os clássicos. E a grande riqueza desses testemunhos literários permite uma convivência espiritual, que a cultora dos estudos greco-latinos sempre nos legou, pode dizer-se, com autêntico amor. No tema escolhido do Além Feliz, estamos no âmago da compreensão da vida, da sua dinâmica e dos seus limites, hoje e sempre – desde as crenças mais antigas, dos mitos das terras longínquas, dos Campos Elísios ao Jardim das Hespérides, à Bem-aventurança no Hades, até às ideias sobre a felicidade do Além nos séculos VI e V a. C., no Orfismo e no Pitagorismo, em Empédocles, na poesia lírica e dramática, nos testemunhos epigráficos – e nos grandes mitos de Platão: Górgias, Fédon, Er, Fedro e no diálogo pseudo-platónico Axíoco…

NA UNIVERSIDADE DE COIMBRA

O percurso da estudiosa é apaixonante, tanto mais que a jovem o seguiu pelas vias mais audaciosas. Tudo isto num tempo em que a mulher estava ainda fora da vida académica. Só uma alemã, Carolina Michaëlis, tinha tido lugar antes na docência da Lusa Atenas. Frederico Lourenço falou, por isso, justamente, de coragem, determinação e vontade de aprender. Em Coimbra, Maria Helena fora desafiada por Carlos Simões Ventura e seguira o conselho de ir até Oxford. A opção parecia impensável. A família do Porto Culto apoiou e abriu um caminho novo para as humanidades, no sentido mais rico e amplo do termo. Desse seu professor dirá: “Escrupulosamente fiel aos seus princípios (…) norteou a sua vida académica e particular por uma rigidez quase estoica, sem desvios nem afrouxamentos numa linha de conduta sempre coerente e límpida…”. E lembrava a expressão de Horácio – justum et tenacem propositi – e a paráfrase vernácula de Correia Garção: “constante varão justo e firme”. A discípula seguiu as pisadas do professor, superando-as largamente. E atenta ao exemplo do Professor E. R. Dodds (o célebre autor de Os Gregos e o Irracional) manteve uma ligação constante à evolução das condições históricas e das mentalidades nas sociedades greco-romanas. Daí um especial cuidado relativamente à dimensão humana subjacente aos textos que analisa. Homero, Hesíodo, Píndaro, Aristófanes, até culminar em Platão. “O mito do Górgias está claramente ligado à tradição homérica, embora já nele se evidenciem alguns traços novos. O do Fédon constrói um vasto cenário geográfico, onde a luz, a cor e a forma desempenham o papel mais importantes. No mito de Er depara-se-nos uma cosmogonia, na qual os efeitos visuais e auditivos ocupam um lugar não menos proeminente, embora o problema central não deixe nunca de ser o da escolha do destino. O mito de Fedro coloca definitivamente a cena no céu e retira deliberadamente todos os pormenores que possam sugerir objetos materiais”.

A CAMINHO DE OXFORD

Teria sido a leitura de uma tragédia grega, Oresteia, de Ésquilo, quando tinha 13 anos, que a levou a seguir Clássicas, mas quando chegara à Escola Litterae Humaniores de Oxford, ainda sob os efeitos do racionamento da Guerra, terminada cinco anos antes, apenas tinha quatro anos de Grego. As excecionais capacidades de trabalho permitiram-lhe, porém, ganhar grande competência na língua grega, envolvendo crítica textual, paleografia e epigrafia. E ainda se tornaria uma reputada especialista de vasos helénicos. O seu contacto desde cedo com a língua e a cultura alemãs foi de grande utilidade, tendo realizado para a célebre Biblioteca Teubneriana a edição crítica da obra de Pausânias em três volumes. A obra de Maria Helena da Rocha Pereira tem um valor múltiplo – é cientificamente essencial, é pedagogicamente única e é historicamente indispensável para o conhecimento das raízes culturais europeias e mediterrânicas. A edição da Fundação Gulbenkian de A República de Platão é justamente considerada uma tradução exemplar, reveladora de um conhecimento abrangente e universalista da sua autora. A publicação da obra completa pela Gulbenkian e pela Imprensa da Universidade de Coimbra em curso tem assim um valor indiscutível. A Medeia de Eurípedes e a Antígona de Sófocles, nascidas da colaboração com o Teatro Universitário de Coimbra, são, em si mesmas, obras literárias de primeira água. António Guerreiro falou da preocupação da Professora “de mostrar que (a cultura grega e latina) não era uma relíquia de museu ou objeto de uma historiografia mortuária” (Público, 11.4.2017). Daí também a importância dos ensaios sobre a influência clássica nos autores portugueses, de Camões a Torga, a Eugénio de Andrade e Sophia de Mello Breyner. A sua familiaridade com a obra de Platão leva a ter de ser considerada como uma das leitoras mais estimulantes do ponto de vista filosófico. Mas o que se revela fascinante é a capacidade integradora do pensamento na cultura grega. Desse modo, considera a inclinação dionisíaca de Nietzsche um “erro genial”, mas um erro, já que não pode subalternizar-se a força indiscutível da tendência apolínea. Como afirma no fecho da sua crucial dissertação doutoral: “a noção de que a bem-aventurança no além devia ser de natureza puramente intelectual surgiu, pela primeira vez, do cérebro de um filósofo, como era de esperar. Representa uma meta alcançada na evolução do pensamento escatológico, cuja importância não é demais encarecer. Porém, as outras conceções, que acabámos de ver, de tal modo refletem o amor pela beleza da forma e das cores, o desejo de gozo da vida física em toda a sua plenitude, que menosprezá-las seria pôr de parte uma das características mais marcantes do espírito helénico”… Não esqueço a sua amizade!    

Guilherme d’Oliveira Martins

Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

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