A Vida dos Livros

De 1 a 7 de junho de 2015.

Continuando a celebração dos setenta anos do Centro Nacional de Cultura, invocamos hoje o lugar da Cultura na sociedade contemporânea – fiéis a um longo e fecundo caminho de uma língua de várias culturas e de uma cultura de várias línguas…

QUE LUGAR DA CULTURA?
Falar do lugar da cultura hoje, numa sociedade como a portuguesa, é compreender que não estamos perante um problema marginal no desenvolvimento humano, nem em face de um tema só de alguns – como sempre nos ensinaram as nossas presidentes inesquecíveis e sempre presentes na nossa memória Sophia de Mello Breyner e Helena Vaz da Silva. Referimo-nos à educação de qualidade, à investigação científica, à cooperação internacional e à avaliação exigente do que fazemos, bem como à defesa do património, da herança e da memória culturais, em ligação com a criação contemporânea. A cultura é uma realidade transversal, que não se dá bem com o isolamento e o sentimento de autossuficiência. Daí não bastarem as boas intenções nem os ingénuos desígnios. Os investimentos nas pessoas, para serem reprodutivos e terem efeitos em mais desenvolvimento, têm de se articular com as prioridades na criação e sustentabilidade dos recursos disponíveis, a começar no fator humano. Muitas vezes generosas declarações nestes domínios não têm quaisquer efeitos na melhoria das sociedades. Teremos, por isso, de perceber que a educação e a formação visam formar cidadãos (e não só profissionais), conscientes de que a aprendizagem é o verdadeiro fator de desenvolvimento. E se nos referimos à arte de aprender mais e melhor, temos de a ligar à capacidade de responder aos desafios que nos são lançados pela economia e pela sociedade. Apenas poderemos contrariar o fatalismo do atraso se percebermos que uma sociedade culta tem de cuidar do que recebe das gerações passadas e de usar como modo de ação a abertura, o cosmopolitismo, a eficiência, a equidade e a justiça. Por isso, o lugar da cultura não se pode confundir com um ornamento ou um luxo, mas tem de estar implicado no contrato social, no projeto de desenvolvimento e na confiança. Temos, por isso, de lembrar dez palavras-chave que nos permitam alcançar uma sociedade culta, como pressuposto do desenvolvimento. E tais palavras são: liberdade, responsabilidade, confiança, coesão, património, herança, memória, relevância, desenvolvimento e democracia. Na Póvoa de Varzim, nas «Correntes d’Escritas», perguntámos: quem tem medo da cultura? E, falando do apoio às artes, recordámos os ensinamentos de Lorde Keynes (lembrando os mecenas italianos do Renascimento), a defender a necessidade de criar meios duráveis, legítimos e independentes para evitar que a defesa do património e a criação artística ficassem dependentes de oscilações eleitorais ou de gosto ou de meras vicissitudes do mercado – devendo estar submetidas a regras de serviço público e de interesse geral…

LIBERDADE COMO PATAMAR INICIAL

A liberdade é o patamar inicial para a definição do lugar da cultura, como sinal da autonomia criadora e da necessidade do reconhecimento da importância da tradição e da inovação. E, num tempo como aquele que vivemos, pleno de perigos e ameaças, só a capacidade inovadora e a adequação entre recursos disponíveis e necessidades a satisfazer podem preservar a liberdade e a autonomia pessoal como expressão da dignidade humana. Liberdade igual e igualdade livre, reciprocidade entre direitos e deveres, são elementos cruciais para que cultura e cidadania se completem naturalmente, com igual consideração e respeito por todos. A responsabilidade, enquanto capacidade para compreender os outros e para recusar a indiferença e para ter resposta relativamente a quem no-la solicita, surge como cuidado com o que é próprio e é comum. A atenção e o cuidado são fatores que permitem distinguir a cidadania ativa. A confiança é o elo agregador que articula o respeito pelo outro e a solidariedade, permitindo que a comunidade funcione, não fechada sobre si mesma, mas baseada no respeito pelas raízes herdadas e nos desafios lançados pelos desígnios futuros. A coesão é o corolário desse sentido comunitário, funcionando como fator de justiça distributiva e intergeracional e de convergência social. De facto, o lugar da cultura não pode ser preservado se esse sentido de justiça contrariar o encontro e o diálogo, em nome da fragmentação e de uma conflitualidade desregulada. E, se referimos as raízes, temos de lembrar o património como salvaguarda do que somos e do que queremos ser, numa aceção dinâmica de serviço (múnus) do que recebemos dos nossos ancestrais (patres), que envolve património material e imaterial e o valor acrescentado contemporâneo. Já a herança corresponde à preservação das diferenças e complementaridades, entendendo que a fidelidade histórica obriga à abertura e à compreensão – devendo, por exemplo, o respeito pelo legado da língua e da cultura (língua de várias culturas, cultura de várias línguas) ser uma exigência de qualidade, de rigor e de criatividade. A memória é a garantia de uma cultura viva, capaz de lembrar o que merece ser recordado e de recusar o ressentimento – contra a cegueira do imediato e o perigo da indiferença. E, chegados à relevância, temos a recusa da mediocridade e a procura da capacidade para nos compararmos e para cooperarmos na qualidade. Temos, pois, de garantir que a cultura seja criadora de valor e, simultaneamente, capacidade de transformar a informação em conhecimento. Se recordarmos os melhores momentos da nossa história, verificamos que corresponderam a alianças que nos permitiram ser pioneiros e protagonistas. O desenvolvimento humano é, já o vimos, aprendizagem, mas também é inteligência crítica para aproveitar o melhor possível as novas circunstâncias e a própria incerteza. Eis por que razão a democracia é uma marca decisiva, com todas as incertezas e imperfeições, a preservar numa sociedade culta. Estando sempre incompleta e sendo imperfeita por natureza, a democracia possui a virtualidade insuperável de se basear no pluralismo, nas diferenças e no respeito mútuo de todos. É a democracia, como pressuposto de uma cultura de paz e como realização de um Estado de direito e duma sociedade de direitos e deveres fundamentais, que permite colocar a cultura, a educação e a ciência como prioridades fundamentais da sociedade moderna.

OLHAR O MUNDO DA LUSITANA PRAIA

Na recente iniciativa do CCB e do CNC do Dia Vasco Graça Moura, lembrou-se o cuidado extremo que o homenageado sempre teve com a noção de identidade nacional. Como dizia VGM: «cada identidade sofrerá dois impulsos fundamentais e, em certa medida, contraditórios: o que faz reviver na expressão e na partilha da sua tradição cultural própria e dos seus valores adquiridos e o impulso que pode banaliza-la e descaracterizá-la, ou mesmo apaga-la de todo, nos contactos tão fortemente interativos que lhe proporcionará» («Lusitana Praia», Asa, 2004, p. 21). E, na linha de Eduardo Lourenço, afirmava ainda: «Ser português, hoje em dia, requer portanto uma sensatez de postura que encare a história sem complexos e que rejeite tanto as possíveis hipertrofias de identidade, como as atrofias dela» (p. 33). O lugar da cultura não é o da identidade, mas o da compreensão universalista das raízes e da vida, que, não esquecendo o que nos diferencia, procura um sábio equilíbrio entre a proximidade e uma visão humanista de conjunto.

Guilherme d’Oliveira Martins

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