“Chiquinho” pôs-nos perante o dilema do ficar ou do partir – eis a grande dúvida, neste ponto do nosso folhetim… Se falamos de enigmas numa história de fantasmas, nada melhor do que seguir caminho até ao Olimpo, para nos encontrarmos perante um curioso debate entre espíritos supremos sobre esse dilema de seguir em frente ou de tornar atrás. Para chegar ao Olimpo é preciso passar por “perigos e guerras esforçados, mais do que permitia a força humana”. E damo-nos com um Concílio. Eu sei que podemos escrever Consílio, mas mantemos a fórmula comum, mesmo que esta se confunda com a reunião de um areópago religioso. Olimpo é mais do que isso, e mantém-se a letra c… “Já no largo Oceano navegavam, as inquietas ondas afastando” … “…Os Deuses no Olimpo luminoso / onde o governo está da humana gente / Se ajuntam em concílio glorioso”. E ouvimos a voz de Júpiter, a defender os portugueses, afirmando serem estes um povo de grande valor, como ficou demonstrado no tempo largo. É a coragem dos portugueses que os leva a navegarem em mares desconhecidos, em frágeis naus, enfrentando ventos e tempestades. Que diz o pai dos deuses? “Que sejam, determino, agasalhados / nesta costa africana como amigos, / E, tendo guarnecida a lassa frota / tornarão a seguir a sua longa rota” (C. I, 29). E eis que irrompe a voz de Baco, opondo a sua voz à decisão de Júpiter, argumentando que os portugueses se tornariam superiores a ele próprio no Oriente. Vemos aqui o confronto da primeira globalização. Baco teme a mudança. Júpiter compreende o desenho do novo mundo. Mas, depois de Baco, ouvimos Vénus, belamente representada na gravura de Desenne da edição de 1837 de “Os Lusíadas” do Morgado de Mateus. Vénus defende os portugueses porque se trata de gente que se assemelhou ao povo romano, em coragem e valentia. E assim com o contributo dos portugueses seria Roma, por certo, pela fama e pela língua, venerada também no Oriente. “Ou porque o amor antigo o obrigava / ou porque a gente forte o merecia”. E Marte também defende a estirpe dos descendentes de Luso ou Lisa, de Baco filhos ou companheiros, porque achava que eles bem o mereciam e, deste modo, Vénus estava na plena razão. Por isso, Marte ordena que se façam respeitar as ordens de Júpiter pois Baco não tinha razão, agindo por despeito, devendo os descendentes de Luso ou Lisa merecer recompensa. E Camões escreve no mármore puro: “E tu Padre de grande fortaleza, / Da determinação que tens tomada / Não tornes por detrás, pois é fraqueza / Desistir-se da cousa começada. / Mercúrio, pois, excede em ligeireza / Ao vento leve e à seta bem-talhada. / Lhe vá mostrar a terra, onde se informe / Da Índia e onde a gente se reforma”. Mas a história fantasmática prossegue, e Baco, inconformado, instiga o governador de Moçambique contra os portugueses e põe a bordo um falso piloto, mas graças a Vénus, às nereidas, a Mercúrio e à coragem de Gama, os portugueses chegam a Melinde. Inicia-se o relato ao rei Melinde da história de Portugal, “onde a terra se acaba e o mar começa” e das origens, de Viriato até à morte de Inês de Castro. É claramente o partir que prevalece e o longo e belo episódio da Ilha dos Amores corresponde à decisão de Vénus de premiar os navegadores por tal decisão, numa ilha paradisíaca. E oiçamos o soneto: “Busque Amor novas artes, novo engenho, / para matar-me, e novas esquivanças; / que não pode tirar-me as esperanças, / que mal me tirará o que eu não tenho…”. Luís de Camões representa a maturidade poética da língua portuguesa. É o supremo cultor do idioma. Toda a obra do grande épico e lírico constitui oportunidade para lidarmos com uma riquíssima convergência entre o amor e a beleza, os maravilhosos pagão e cristão, servidos pelo domínio exemplar da palavra e da imagem. E prosseguimos assim a caminhada entre espíritos, como se estivéssemos numa máquina do tempo…
D. Deuses (Concílio dos)
4 Agosto, 2023
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