UM HOMEM DE CAUSAS
A última vez que estivemos juntos foi há algumas semanas, a trabalhar, em casa de uma amiga comum, a Professora Maria da Glória Garcia. Apesar de frágil fisicamente, continuava a ser o mesmo, extremamente metódico e rigoroso, afável e disponível, sem perder o fio condutor do bom método. Tratava-se de reorganizar o grupo dos amigos do Mosteiro dos Jerónimos, nascido da preocupação de não considerar o Ano Europeu do Património Cultural como um momento passageiro e sem consequência. Quando, há dias qualifiquei, sentidamente, Diogo Freitas do Amaral como um homem de causas, estava a pensar em vários dos momentos da sua vida, alguns em que nos encontrámos e convergimos. Para o jovem professor que encontrei na Faculdade de Direito em 1970, foi essa uma das marcas do seu carácter que me atraiu. Mais do que o formalismo do ato administrativo, importava, essencialmente, ver a Administração Pública como realidade viva, ao serviço dos cidadãos e da realização do bem comum. E quando, nesse tempo, estudávamos realidades novas, como o ordenamento do território, era a aproximação aos cidadãos que estava em causa. E quando líamos Alexandre Herculano a reclamar a governança do país pelo país e a ligar a liberdade cívica à melhor organização dos povos e ao reconhecimento do valor matricial do municipalismo, descobríamos, naturalmente, a importância do reformismo. Estávamos num tempo em que a ideia de reforma não podia deixar de entrar na ordem do dia.
O CULTO DA HISTÓRIA
Se falo de Herculano é, também, para dizer que encontrei sempre em Diogo Freitas do Amaral a paixão da história, da história política e da história das ideias. Os temas culturais entusiasmavam-no. Nota-se essa inclinação em obras como: “D. Afonso Henriques – Uma Biografia” (2000), “D. Afonso III, o Bolonhês, um Grande Homem de Estado” (2015) e “Da Lusitânia a Portugal. Dois Mil Anos de História” (2017). Tivemos oportunidade de falar sobre esses temas, e a leitura dessas obras significa, antes do mais, repercussão de uma prática anglo-saxónica evidenciada em muitos grandes intelectuais e políticos (como Roy Jenkins) que leva à reflexão e à escrita, muitas vezes biográfica, de modo a enriquecer o debate de ideias. As três obras referidas enquadram-se nessa boa tradição. Mas outras houve que deixou, designadamente para melhor compreensão dos diversos temas jurídicos e políticos que estudou. É a reflexão política que está presente – ligando a visão crítica dos acontecimentos históricos e sobre a evolução de Portugal. O caso de D. Afonso III é evidente. De facto, o pai de D. Dinis é quem cria condições para a constituição pioneira de um Estado pós-medieval, com unidade política, administrativa, económica e cultural. Vindo do centro da Europa, o Bolonhês, o grande homem de Estado, conseguiu construir no ocidente peninsular uma realidade moderna, que abrirá horizontes para os fulgurantes séculos XIV e XV. Esse sentido reformador entusiasmou o nosso autor, que escreveu a obra histórica a pensar no Portugal de hoje, a partir da Europa, e na necessidade de planear o futuro com horizontes abertos e largos. O mesmo se diga da biografia de D. Afonso Henriques, onde é a rigorosa análise política que prevalece, com destaque para a compreensão da importância de consolidar a frente marítima – que até aos nossos dias se tem revelado essencial. Aqui esteve a divergência política (longe explicações psicanalíticas) com a mãe, D. Teresa, que estava apegada à manutenção de influência no reino asturo-leonês e na Galiza… O que esteve em causa, como o autor confirma, seguindo a melhor doutrina, foi a amplitude significativa da revolta dos barões portucalenses, bem como “a impressão causada pelas qualidades combatentes e de liderança demonstradas pelo jovem príncipe português”. Uma leitura atenta das obras referidas confirma plenamente como o cidadão culto e estudioso, ciente da importância da História política, contribui com sentido pedagógico e capacidade crítica para a reflexão, de que tanto está carenciada uma sociedade que se deseja esclarecida e madura – em lugar dos tempos de imediatismo e de superficialidade. A História política tem de ser valorizada, não apenas na dimensão historiográfica, mas também no campo das ideias. Essa era uma convicção clara que sempre encontrei no estudioso.
UM PEDAGOGO ATIVO
Já referi a anglofilia de Diogo Freitas do Amaral, que levava, nestes últimos tempos, à amargura pelo que via na evolução dos acontecimentos ligados ao “Brexit”, no qual ninguém se entende, contrariando um proverbial “british common sense”, que tanto admirava. Para além de ser um cultor exemplar do “Direito Administrativo”, na senda de Marcelo Caetano, com novas perspetivas científicas e pedagógicas abertas, tornou-se um exemplar pedagogo da “História das Ideias Políticas”, sobre que também muito falámos. Na ”História do Pensamento Político Ocidental”, de Thomas Morus a Montesquieu, até Burke e Tocqueville, chegando nos nossos dias a Karl Popper, Raymond Aron, Isaiah Berlin ou Jacques Maritain o que o preocupa é a compreensão da democracia como realidade dinâmica, em permanente transformação, num sentido reformista, com instituições mediadoras, capazes de garantir a representação e a participação dos cidadãos. Leia-se, aliás, o “Manual de Introdução à Política” (2014), onde as ameaças sobre democracia estão evidenciadas, com uma preocupação especial com a verdade e a justiça. E não esquecemos que foi por proposta do CDS que a Constituição da República refere expressamente no seu articulado a Declaração Universal dos Direitos Humanos, como garantia de um Estado de Direito e de direitos. As três revoluções, inglesa, americana e francesa, tinham de ser vistas pelo autor articuladas entre si, no contexto do pluralismo e da separação e interdependência de poderes. E o “New Deal” de Franklin D. Roosevelt permitiu às economias mistas modernas dar resposta às incapacidades do mercado e às incapacidades da intervenção do Estado. As encíclicas de João Paulo II, Bento XVI e do Papa Francisco sobre a idolatria do mercado, sobre a “economia que mata” e sobre os desafios ligados ao meio ambiente mereceram, assim, especial atenção ao cidadão preocupado com a emergência de democracias ditas iliberais, que considerava chocantes contradições nos termos. Como homem de causas, como homem de cultura, empenhou-se ativamente pela cultura da paz, pela defesa e salvaguarda dos direitos fundamentais e, para referir um dos seus últimos combates empenhou-se em considerar a defesa do património cultural como um dever fundamental de uma sociedade mais humana e respeitadora da sua memória. Deixar ao abandono a herança e a memória das gerações que nos antecederam é destruir o carácter e a identidade, como realidade abertas, não do passado, mas do presente e do futuro. O património material e imaterial, a natureza e as paisagens, o mundo digital e a criação contemporânea exigem a nossa responsabilidade. Diogo Freitas do Amaral ensinou-nos a não baixar os braços.
Guilherme d’Oliveira Martins
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