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Cuidar do património em perigo

Almeida Garrett quando escreveu as «Viagens na Minha Terra» chamou a atenção para a desatenção a que era votado o nosso património cultural deixado ao abandono e sujeito à especulação desenfreada.

Alexandre Herculano, nas páginas do «Panorama», empenhou-se igualmente nessa tarefa de apelar à atenção de todos relativamente ao património. Por isso cuidou de proteger as edificações com valor de memória e de salvaguardar documentos fundamentais que se teriam perdido se não fosse o seu persistente zelo. Ambos anteciparam o que com o tempo ganhou direito de cidade – a indispensabilidade de cuidar do património, da herança e da memória.

A noção moderna de património cultural é dinâmica e evolutiva. Trata-se de valorizar a herança das gerações que nos antecederam, enriquecendo-a com a abertura à criação contemporânea. Em lugar de uma lógica apenas conservacionista, visa-se inserir a preservação do património na inovação e na criatividade como um valor fundamental para o desenvolvimento humano. E uma das lições da crise financeira cujos efeitos ainda sentimos é a da necessidade de ponderação do longo prazo, da criação de valor, da metamorfose da informação em conhecimento e do conhecimento em inovação, da coesão social e da consideração da aprendizagem como fator essencial de desenvolvimento. Afinal, os riscos, que duramente sentimos, do choque de civilizações e da escalada da violência fruto da incompreensão e da indiferença, da fragmentação e da exclusão apenas poderão ser superados através da saudável diversidade cultural assente no diálogo, no respeito mútuo e na compreensão da centralidade da dignidade humana. A rede da «Europa Nostra», representada em Portugal pelo Centro Nacional de Cultura, decidiu desde 2013 lançar o programa «Os 7 mais ameaçados», em conjunto com o Instituto do Banco Europeu de Investimento e o Banco de Desenvolvimento do Conselho da Europa. A inspiração veio do programa norte-americano gerido pelo Fundo Nacional para a Preservação Histórica. Não se trata de um programa de financiamento, mas visa ser um catalisador e promotor do «poder do exemplo» – contando com o apoio da União Europeia, através da «Europa Criativa», no âmbito da rede «Mainstreaming Heritage» da Europa Nostra. Portugal já foi beneficiário direto da escolha, nos dois últimos concursos, de importantes exemplos de património a exigir de especial apoio – falamos do Convento de Jesus de Setúbal (joia arquitetónica do manuelino) e dos carrilhões do Convento de Mafra (num conjunto único na Europa).

Na edição deste ano, se não houve a escolha direta de um caso português nos sete, o certo é que se verificou uma recomendação inequívoca para o Palácio de Valflores em Santa Iria da Azóia, no concelho de Loures (www.cnc.pt/artigo/3569). O monumento, mandado construir no século XVI por Jorge de Barros, feitor de D. João III na Flandres, que funcionou como habitação até 1870 e depois com finalidade agrícola, é considerado como um exemplo singular de arquitetura residencial renascentista. Apesar da classificação do imóvel como de interesse público, o palácio, hoje propriedade do Município de Loures, encontra-se em avançado estado de degradação e em risco de colapso. Neste sentido, o edifício foi integrado nos catorze casos prioritários, exigindo intervenção que deverá concentrar-se na estabilização e consolidação do edifício a fim de travar a sua degradação. A recomendação da Europa Nostra é muito clara: reclama uma intervenção no sentido de impedir a destruição de um exemplo único da arte renascentista portuguesa. Nesse sentido, estamos certos de que, como já foi afirmado por responsáveis na área do Património Cultural, não deixarão de ser dados os passos necessários para que a recomendação seja respeitada! Acorrer ao património ameaçado é pôr a tónica numa cultura em permanente maturação.

Guilherme d’Oliveira Martins
in Diário de Notícias | 25 de março de 2016

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