Anísio Franco e Bárbara Assis Pacheco enviaram-nos duas crónicas entusiásticas sobre a chegada a S. Tomé de Meliapor. De facto, alcançaram uma terra quase mítica para nós. É um dos lugares mais importantes da cristandade. Com Santiago de Compostela e Roma, é um dos santuários que invoca a presença e o martírio do apóstolo S. Tomé. A Igreja no centro de Madrasta já não é a original, como abaixo se explica, mas guarda referências fundamentais, verdadeiros tesouros, não só das origens do culto, mas também da memória da presença indo-portuguesa, designadamente um extraordinário relicário em prata, cuja presença causa uma especial emoção. Não se esquece ainda a presença da comunidade que perpetua essa antiga presença do cristianismo nestas paragens. Para Anísio Franco as preciosidades históricas e as cerimónias religiosas rodearam-se de especial significado, neste dia que ficou marcado na memória de todos pela forte presença de uma especial espiritualidade. E Bárbara fala-nos de cores e formas incríveis, das pessoas em equilíbrios precários nas motas e nos tuk-tuks. Os saris, as vestimentas que esvoaçam, as cores extraordinárias. Tudo funciona, ninguém se magoa, e as mulheres fazem tudo ao mesmo tempo, sentadas de lado nas motas, trazem as crianças, veem o telemóvel e saúdam as pessoas no autocarro. E muitas surpresas, como na Fortaleza de S. Jorge a árvore das salsichas (árvore pertencente à família das Bignoniaceae com o nome científico de Kigelia africana), que Anísio batizou como “árvore dos salpicões”, pelos frutos enormes que produz, além da cor de coral que anima um mundo plantas extremamente belas. Chennai é o principal centro do poder no sul do subcontinente indiano, como foi nos tempos do domínio britânico. Muita emoção e muito para ver e conhecer…
Oiçamos o Professor Walter Rossa: «Meliapor – cidade do pavão em tamil – está há muito integrada na metrópole estabelecida a partir da cidade indiana de Madras, Madrasta para os portugueses e Chennai na relativamente recente redenominação toponímica indiana. É a quarta mais populosa metrópole do país. (…) A metrópole desenvolveu‐se sobre uma costa baixa, plana e arenosa, entrecortada por vários lagos e rios que descem das montanhas situadas a cerca de uma dezena de quilómetros do mar. (…) Na antiguidade, Meliapor teve uma existência recheada de factos relevantes para a história da vasta região do Golfo de Bengala. Assim, não espanta que São Tomé, o Apóstolo da Índia, depois da sua ação na Mesopotâmia e no Malabar, ao deslocar‐se para o Coromandel‐Bengala ali se tenha fixado. Perseguido, foi martirizado em 72 no Monte Grande (Thomas Mount), uma elevação com cerca de mil metros de altitude, situado a sudoeste de Meliapor e a cerca de dez quilómetros do mar. Há também uma versão que dá como causa de morte um acidente e até quem coloque em causa a própria estada do apóstolo na Índia. Mas o que aqui nos importa é o que a crença desencadeou no local. O que se passou após a morte de São Tomé é também confuso e controverso, havendo quem defenda ter sido sepultado no local da morte e, depois, transladado em 1523 pelos portugueses para Meliapor, quem afirme que foi logo sepultado em Meliapor, na capela que construíra sobre a praia para ali pregar diariamente e onde os portugueses ergueram uma nova basílica naquele ano, e quem dê curso à versão da transladação de parte das suas relíquias em 232 para Edessa na Mesopotâmia, as quais depois de um percurso rocambolesco acabariam em 1258 em Ortona (Itália). Para o nosso caso não é, mais uma vez, muito relevante a polémica, mas sim o facto de a sepultura estar na cidade no local onde os portugueses ergueram a basílica tumular católica sobre outra precedente. Também pouco importa se ali permanecem ou não relíquias do apóstolo, mas a verdade andará por algo como a sua repartição e, assim, a manutenção de algumas no primitivo local de sepultamento, sabendo‐se que em 390 ali existia um mosteiro. Sabe‐se também que nos séculos IX e X os árabes chamavam à cidade Betumah (cidade de Tomé) e que os cristãos nestorianos (persas) ali estabeleceram uma comunidade na sua diáspora forçada pelo Oriente. Marco Polo (1254‐1324) visitou o local, mencionando no seu livro a capela nestoriana sobre o túmulo, bem como o mosteiro que os nestorianos haviam erguido e ocupavam no local do martírio. Com a instalação autónoma de portugueses em Paleacate a partir de 1518 – situada quarenta quilómetros a norte e onde chegaram a erguer uma fortaleza, que acabou conquistada pelos holandeses em 1609 -, os rumores da existência do túmulo do apóstolo levaram‐nos a procurá‐lo sob ordem expressa do governador do Estado da Índia. Gaspar Correia, no capítulo nono da Lenda do quinto governador…, deixou‐nos o testemunho da sua visita em 1521, a terceira de portugueses ao sepulcro de São Tomé. (…) Comovente é a referência à “primeyra missa” católica no local no dia do Corpo de Deus de 1521. É significativo o facto de as primeiras visitas portuguesas terem sido feitas por terra, precisamente a partir de Paleacate. Paleacate era de facto muito melhor porto, mas o singular magnete religioso da descoberta do túmulo de um dos doze apóstolos revelava‐se mais forte. O investimento na renovação dos edifícios que marcavam a ação do santo no local foi feito desde logo, a par com escavações prospetivas nas igrejas e imediações. Ao longo da década de 1540, na igreja do local do martírio no Monte Grande (Nossa Senhora da Expectação) e nas igrejas dentro e sobre uma gruta onde o apóstolo residiu no Monte Pequeno, a meio do percurso entre o primeiro e a cidade. Em 1522‐1523, na igreja no centro de Meliapor, sobre a praia, no local onde está o seu túmulo. Aqui o resultado foi um edifício de consideráveis dimensões, do qual se guarda um desenho, pois foi integralmente renovado entre 1893 e 1896. A par com São Pedro do Vaticano e Santiago de Compostela, é um dos três únicos túmulos de apóstolos reconhecidos e dignificados com uma basílica. As duas igrejas dos montes mantêm o essencial ou mesmo muito do que os portugueses ali proveram (…). Nos inícios da década de 1520, portugueses encontram assim um forte motivo para se instalarem em Meliapor, que então passam compreensivelmente a designar por cidade de São Tomé. Como em todo o Coromandel e Golfo de Bengala, a presença portuguesa fez‐se essencialmente sentir pela iniciativa de tratantes autónomos da coroa, mas não só. É reveladora a descrição que dessa situação nos faz o Livro das Cidades e Fortalezas… em 1582: “muitos Portugueses despois de cansados dos trabalhos da Guerra, fizerom nella assento de vivenda, e a emnobrecerom com magnificas e sumptuosas casas de sua morada, e fermosos jardins e Igrejas, e templos muito lustrosos e bem ornamentados: e outros nobres edifícios, que situarom demaneira que cõ elles, e com as paredes e cercas dos jardins que tem, se cercarom e forteficarom são tomé em roda para se poderem defender dos Gentios da terra”».
Oiça aqui as crónicas de Anísio Franco e Bárbara Assis Pacheco:
Consulte aqui o Programa desta viagem.
Apoio: Portal HPIP – Património de Influência Portuguesa