Crónicas de Viagem

Crónicas de Viagem – MALACA, TIMOR LESTE E INDONÉSIA

27 de agosto a 10 de setembro de 2011

Crónicas disponíveis no canal de Podcasts do CNC

Crónica I
por Guilherme d’Oliveira Martins
Gravação: 31-08-2011 | transmitida na Rádio Renascença

Malaca acolheu-nos principescamente. A visita ao bairro português é um motivo especial de interesse, da antiga Fortaleza de Afonso de Albuquerque, “A Famosa”, apenas resta a porta da muralha, já que os ingleses não evitaram a destruição do edifício militar que em muito se assemelhava à nossa Torre de Belém, como aliás está representado nos documentos da época. Para nós, o mais emocionante foi a subida aqui à Igreja do Monte sob a evocação da Anunciação, ou de São Paulo, onde São Francisco de Xavier pregou e onde foi sepultado por D. Miguel de Castro, filho de D. João de Castro. As visitas sucederam-se mas o mais importante foi ouvir o papiar do Século XVI, a língua franca dos  mercadores que os missionários desenvolveram sabendo-se que os textos religiosos são sempre fundamentais para a afirmação de uma língua.

Hoje estamos em Bali e vivemos uma imersão total na cultura hindu, aqui caldeada pelo animismo vivido pelas populações mais antigas da ilha. Nos templos que visitámos encontramos os três mundos da cultura hindu –  o domínio dos espíritos que importa aquietar e lembramos a purificação pelo sangue da luta dos galos à entrada do campo santo; o domínio das pessoas humanas e o terceiro domínio, dos deuses e dos antepassados. No caminho longo que seguimos até às montanhas vimos terraços verdejantes dos arrozais mas também as plantações de banana, cacau, papaia e manga e muitas estátuas do hinduísmo; presenciámos ainda a festividade dos muçulmanos a viverem o fim do Ramadão com muita côr e alegria. E culminámos com a ascenção ao vulcão Batur, numa paisagem deslumbrante, em que até o sol timidamente apareceu.  O lago ocupa parte da cratera e o lugar corresponde a um encontro natural entre o sagrado e o humano – e quando chegámos ao templo da Primavera Sagrada, onde a purificação pela água está bem presente, sentimos com naturalidade que aqui em Bali temos intensamente o diálogo entre o homem e a natureza.

Crónica II
por Guilherme d’Oliveira Martins
Gravação: 02-09-2011 | transmitida na Rádio Renascença

Continuando a viajar no sentido dos portos onde os portugueses tiveram a sua presença efectiva, partimos para as Flores onde chegámos ontem a tempo de um almoço tardio, mas retemperador, de modo a visitarmos a família real de Sika – os Ximenes da Silva – na casa de Maumere, com quem pudemos usufruir de uma visita ao pequeno – mas significativo – tesouro, constituído por duas coroas do Rei, pequenas pulseiras e armas votivas. A coroa real é um capacete do século XVII, do ano de 1607, talhado em ouro, com a imponência própria e o fulgor do metal em que foi feito. Verificámos ser necessário criar condições de maior segurança para este património que recorda o acordo realizado pelos portugueses com os chefes da Ilha do “Cabo das Flores” há trezentos anos. E deparamos, com emoção, com a assinatura de Helena Vaz da Silva no livro de honra sentindo que a memória é inapagágel.

A Ilha das Flores, baptizada pelos portugueses, nunca foi conquistada. Foram tradicionalmente os seus reis que exerceram com autonomia o poder nesta terra em que a serpente impera. No entanto, até 1851, e de um modo natural, a população teve o apoio dos portugueses ao abrigo de um entendimento ancestral – reforçado aliás pelas características próprias, culturais e religiosas deste povo, maioritariamente católico.  A caminho de Sika, onde vamos ao encontro do antigo reino, do seu palácio e da sua situação geográfica encontramos uma ilha amiga e fraterna. O Senhor Pereira mostra-nos ainda o que faltava ver do tesouro de Sika – o Menino, ou seja, o Menino Jesus Salvador do Mundo vestido a preceito como se estivesse em Portugal. E se se diz que as Flores – ou o Cabo das Flores, para sermos mais rigorosos – nunca foi objecto de conquista, tal serve para deixar claro que a hospitalidade que recebemos vem dessa longa história – de humanismo, de abertura e de complexidade. Somos recebidos de braços abertos por um povo que não esconde a sua simpatia. E hoje fomos até à montanha, à aldeia de Watublapi, fumar o tabaco da paz, ver as danças tradicionais e como se confeccionam os panos. Foi este mais um momento de emoção partilhado por todos. À parte a distância, as Flores correspondem a uma situação única e o seu povo hoje tem-nos no coração, e nós a ele.

Crónica III
por Dr. Guilherme d’Oliveira Martins
Gravação: 05-09-2011 | transmitida na Rádio Renascença

Longa jornada por estrada, de Dili até Baucau. É ainda aventurosa esta viagem com um caminho muito irregular a obrigar a esforços, solavancos e atenções muito especiais. As nuvens acastelavam-se no horizonte, mas a chuva não veio, antes cedendo lugar ao sol e ao calor. Primeiro tivemos a paisagem xistosa, depois a calcária, primeiro o verde e depois o amarelo, até à cidade de Manatuto, a pequena propriedade e o regadio e a seguir a estepe seca. Sempre com o mar por companhia, com um azul fantástico, apanhámos alguns sustos por causa do abrupto das ravinas. Todos ficam deslumbrados, é Timor Leste no seu melhor, terra acolhedora e agreste, intensa e doce – e até os mangais constituem lição uma vez que medram na água salgada, bastando-lhes apenas algumas horas de água doce. Chegámos a Baucau quase com uma hora de atraso e D. Basílio espera-nos com a sua simpatia e com a hospitalidade que tão bem conhecemos. Um grupo de jovens meninas aguarda-nos na Catedral e os seus cânticos na celebração são o modo de nos dizerem que somos bem-vindos. Ouvimos o seu português, às vezes inseguro, entre pequenos sorrisos, mas o olhar é transparente e de uma simpatia tocante. Hoje já estamos de novo na Indonésia e chegámos a Amboíno. Partimos de manhã bem cedo e já aqui nas Molucas começámos a ver com os nossos próprios olhos um dos cenários da presença portuguesa no Oriente do Oriente. Apesar de pequenos atrasos inevitáveis, sobretudo tratando-se de um voo especialmente contratado, chegámos a esta baía ao fim da manhã e embrenhamo-nos de imediato numa cidade equatorial situada numa pequena ilha intensamente povoada de floresta. A presença de um tão alargado grupo de portugueses causa surpresa. As autoridades locais não se poupam a esforços para nos serem simpáticas. Somos levados ao hotel e depois ao restaurante do almoço, antecedidos por um automóvel da polícia municipal. O Prof. Luiz Filipe Thomaz recorda em pormenor as vicissitudes da presença portuguesa que aqui ocorreu de 1512 a 1605. Fala-nos do naufrágio de Francisco Serrão nas ilhas das tartarugas, do comércio do cravo e da noz-moscada e da chegada de São Francisco Xavier. Mas esses largos contos são tema para a nossa próxima crónica…

Crónica IV
por Dr. Guilherme d’Oliveira Martins
Gravação: 08-09-2011 | transmitida na Rádio Renascença

Nesta vinda às Molucas não podemos deixar de lembrar que Fernão de Magalhães, apesar de português, ofereceu os seus préstimos ao Rei de Espanha para demonstrar que as Molucas estariam fora do hemisfério português. Fê-lo em vão, uma vez que, ao chegar à região, depressa se apercebeu de que não tinha razão. O resto da história é conhecido, mas lembrámo-la esta manhã com Monsenhor Andreas Sol, um holandês católico entusiasta da presença portuguesa nas Molucas e em especial em Amboino. A biblioteca que reuniu é uma preciosidade: livros, mapas, crónicas, revistas – mas mais importante foi o modo como nos recebeu nos seus 95 anos. Este foi sem dúvida o momento alto da nossa passagem por Amboino.
Temos Camões como companhia. Chegados a Ternate, lemos o que o épico nos diz no Canto X dos Lusíadas:

   Olha cá pelos mares do Oriente
  As infinitas ilhas espalhadas:
  Vê Tidore e Ternate, co fervente
  Cume que lança as flamas ondeadas.
  … As árvores verás do cravo ardente,
  Co sangue português inda compradas

Aqui estamos com os vulcões adormecidos em volta, regressados às Molucas do Norte. Somos recebidos com honras especiais. Visitamos o Sultão de Ternate, que recorda a antiga presença portuguesa e faz questão de dizer que agora nos reencontramos em nome da cultura da paz. O Sultão é uma pessoa culta que faz questão de salientar a importância que a vinda dos portugueses tem para o sultanato, dizendo que cada um de nós passará, por certo, a ser um embaixador de Ternate onde quer que se encontre. Fala-nos do fenómeno religioso e da importância do conhecimento nas diferenças culturais ou do diálogo entre as confissões. Estamos na zona de produção do cravinho, mas também da noz-moscada e, num percurso na ilha, paramos na estrada para ver as plantas e compreender o respectivo circuito da produção. A primeira armada portuguesa destinada a Maluco envolveu o mercador Tamul e simultaneamente também Rui Araújo, feitor de Malaca. Mas a expedição de António Abreu de 1511 foi a primeira a sério, carregada de mercadorias com valia nas ilhas do cravo. A história das ilhas e dos portugueses é cheia de peripécias e vicissitudes. Peripécias e vicissitudes sobre as quais continuaremos a falar.

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