Crónicas de Viagem - COCHINCHINA

Cochinchina – Crónica IV

A herança portuguesa no Vietname e no Camboja leva-nos aos locais de memória dos portugueses por terras da Cochinchina.

26 de agosto a 9 de setembro 2017 
Guia: Alexandra Pelúcia
No âmbito do Ciclo de Viagens “Os Portugueses ao encontro da sua História”

31 de agosto, 1 e 2 de setembro – De Phnom Penh a Angkor

A nossa visita de Phnom Penh prosseguiu, antecipando a deslocação a Angkor, o sítio mais emblemático do país dos Khmers. Pelo caminho, fomos sendo familiarizados com a história e a cultura do Camboja, herdeiro de certa forma do grandioso Império dos Khmers (séculos IX – XV), o qual dispunha de um território bem mais extenso do que o do atual Camboja. Ao longo do tempo, o Camboja foi perdendo território para países vizinhos, principalmente, o Sião e o Vietname (neste caso, durante o período da Cochinchina francesa).

Aprendemos que a cidade de Phnom Penh foi estabelecida em 1434 em torno de uma colina artificial construída em 1373 por iniciativa de uma velha senhora abastada de nome Penh, com o apoio dos habitantes, a fim de aí serem enterradas duas estátuas, uma de Buda e outra de Vishnu. Phnom significa colina na língua khmer. Depois de visitarmos o Wat Ounalom, um pagode budista originariamente do século XV, subimos ao topo da colina para visitar um outro pagode budista da mesma época, Wat Phnom, que, de acordo com a lenda, foi ali edificado a fim de guardar as cinzas da família do rei fundador da cidade. Estes pagodes já ali se encontravam, portanto, quando, na segunda metade do século XVI, os missionários portugueses Fr. Gaspar da Cruz e Silvestre de Azevedo chegaram à região. Silvestre de Azevedo notabilizou-se pelo sucesso que ali alcançou na difusão do cristianismo, adquirindo um tal estatuto junto do rei Satha (o rei a quem prestou serviço Diogo Veloso) a ponto de ter sido designado ‘pai’ daquele rei.

A visita do pagode constituiu mais uma interessante experiência de contacto com rituais locais: como, por exemplo, o da colocação pela população de notas de dinheiro (ou seria mero papel sem valor monetário?) debaixo do braço das muitas estatuetas de Buda alinhadas, além das habituais oferendas em flores ou frutos. 

Por seu lado, a passagem pelo Museu Nacional ofereceu-nos como que uma introdução à arquitetura e à arte de Angkor. O Museu foi instituído em 1917, durante o período colonial. Nas suas salas e vitrines um tanto envelhecidas, admirámos estatuária das épocas pré-Angkor (reino de Funan) e Angkor em que se cruzam influências hinduístas e budistas ‘em convivência harmoniosa’, nas palavras do guia que nos orientou. Ficou-nos, porém, o sentimento de que o que ali vimos não constitui mais do que uma ínfima parte do extraordinário património de Angkor, retirado do sítio ou danificado ao longo dos tempos seja por ação do homem, seja da natureza.  

Angkor (palavra que significa cidade) floresceu desde o século IX, no reino do monarca Jayavarman II, até cerca de 1430, quando invasores do Sião a saquearam, conduzindo à deslocação da capital para Phnom Penh. Àquele rei se deveu a instalação da capital em Angkor, uma decisão que hoje qualificaríamos ‘estratégica’ dada a proximidade do Grande Lago com a sua maior valia em água e em peixe, a par da fertilidade do solo (o arroz é a principal produção da região). Àquele rei é atribuído o desenvolvimento de um eficaz sistema de canais de irrigação.

Angkor constitui hoje um conjunto monumental extraordinário (que a Unesco classificou como património mundial em 1992) formado sobretudo por templos, numerosos templos, de que se destacam os de Angkor Thom, Angkor Wat, Bayon, Preah Khan e Ta Prohm (entre os cerca de 270 situados naquele vasto espaço), a que se acede a partir da nova cidade de Siem Reap. Foram estes templos que o grupo do CNC em boa hora percorreu.

Inesquecível! Deslumbrou-nos, antes de mais, a arquitetura e a grandiosidade do lugar e, em cada um dos templos, as galerias concêntricas, as torres, os longos frisos de baixos relevos figurando lindas apsaras (divindades da mitologia hindu) ou retratando desfiles militares ou cenas da vida quotidiana (em Angkor Thom).

Mas o que porventura mais nos fascinou foi a atmosfera que envolve o sítio e o ‘convívio’ entre as pedras e a natureza: em especial no templo de Ta Prohm, conservado em grande parte no estado em que foi descoberto, árvores crescem no interior das ruínas gerando cenários ao mesmo tempo insólitos e belos.

E fascina igualmente a história da descoberta desta cidade perdida na selva durante séculos. O que normalmente se faz correr é que depois de abandonada no século XV, a natureza a invadiu e escondeu até ser descoberta pelos franceses por volta de 1860 (Franceses que, reconheça-se, desde cedo investiram na recuperação e no estudo daquele património no quadro, designadamente, da École Française d’ Éxtrême Orient).

A parte menos conhecida da história de Angkor prende-se, todavia, com o extraordinário facto de ter sido um português, Fr. António da Madalena (como se indicou já noutro episódio deste folhetim) o primeiro ocidental a visitar a cidade, em finais do século XVI. Diogo do Couto, a quem Fr. António da Madalena relatou (em Goa) o que vira, deixou-nos de Angkor uma descrição especialmente sugestiva, num texto do autor que só viria a ser recuperado e publicado no século XX por iniciativa do historiador C. R. Boxer e de que reproduzimos apenas um excerto:

‘1. Já que estamos desta parte, e temos falado no Reino do Camboja, pareceo nos bem darmos aqui relação de uma fermosíssima cidade que se achou em seus matos, … e que se pode ter por huma das maravilhas do mundo. 2. Andando El Rey de Camboja, quoasi nos anos de -50- ou -51- á caça dos Elefantes, plos mais espesos matos que avia em todo aquele Reyno, forão os seus dar com uns Edifiçios cheos por dentro de mato brauio que não o poderão romper para entrarem por elle, 3. E damdo recado ao Rei, chegou aquela parte, e vendo a grandeza e soberba dos muros de fora, desejando ver o de dentro, mandou logo cortar e por o fogo a tudo, … 5. E depois de muito limpa de tudo, entrou El-Rej dentro, e correndo a toda, ficou admirando de grandeza daquele Edifiçio, 6. para o qual assentou logo de passar sua corte, porque alem da cidade ser de grande Majestade em fabrica, e o hera por sitio das melhores do mundo, por ser aquela parte frasquissima de arvoredos, Rios e fontes dagoas excelentes. 7. Era esta cidade coadrada, e de quoadra a quoadra, huma legoa de compridão, 8. Tinha quatro portas principais …11. Tem por cima sinco pontes … ‘

Mais de quatrocentos anos depois, podemos rever-nos no texto de Diogo do Couto: Angkor continua grandiosa e admirável, uma das maravilhas do mundo. 

04 de setembro de 2017 ® Maria Eduarda Gonçalves

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