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Conto :: Um Oratório de Natal

Da autoria de Guilherme d’Oliveira Martins, é o Conto de Natal que a equipa do CNC partilha com todos os seus visitantes, com os votos de um FELIZ NATAL e ÓTIMO 2020.

João Sebastião estava particularmente pessimista naqueles primeiros dias de dezembro de 1734. Tinha uma encomenda especialmente exigente para as igrejas de Leipzig, onde continuava a exercer funções. Infelizmente, o estatuto que lhe fora atribuído era considerado por muitos algo desprestigiante, sobretudo para um autor com a qualidade e a experiência que eram as suas. E o certo é que, naquele cinzento mês, tudo parecia contribuir para reforçar um sentimento de mediocridade e de depressão que era difícil de ultrapassar. Não, João Sebastião, sempre tão animoso, achava por uma vez que não seria capaz de levar a bom porto este pedido. A direção musical do Collegium Musicum não era suficientemente motivadora. É verdade que tinha consciência do seu mérito, mas naqueles dias sentia-se totalmente vazio de inspiração. Na sua frente estavam seis pontos, que correspondiam ao programa do Oratório pedido para a Igreja de São Nicolau, que poderia ser partilhado parcialmente por apresentações na Igreja de São Tomé. As palavras estavam alinhadas da esquerda para a direita: Nascimento e Anunciação dos Pastores; Adoração dos Pastores; Prólogo para o Evangelho de São João; Circuncisão e Nominação de Jesus; Fuga para o Egipto e Jornada e Adoração dos Reis Magos. Mas o vazio permanecia. João Sebastião não sabia por onde começar e como tratar dos temas. E não bastaria tratá-los de modo passivo e burocrático, era necessário encontrar um motivo – um elemento motivador. E era esse que exatamente lhe faltava naqueles dias cinzentos. O Natal ia-se aproximando vertiginosamente e não havia modo de encontrar o veio que permitisse construir o Oratório de Natal que João Sebastião desejava no íntimo do seu coração. Perante a falta de ideias, João Sebastião começou a colecionar composições anteriores – com início em três cantatas seculares, escritas um ano antes. Talvez não fosse esse exatamente o melhor caminho, mas havia que encontrar uma solução. Além das cantatas seculares, João Sebastião encontrou outras cantatas religiosas em que se empenhara nos anos anteriores. É verdade que não poderia limitar-se a repetir o que já fizera – mas, como já procedera noutros casos, poderia fazer adaptações. Mas nem isso se sentia capaz de realizar. Havia como que uma recusa ancestral para avançar.

Nalgumas noites sonhara mesmo que um estranho fantasma lhe comunicava que não haveria naquelas festas o Oratório de Natal prometido, encomendado e necessário. Contudo, numa das manhãs cinzentas daquele mês interminável e tremendo, João Sebastião dirigiu-se à Igreja de São Tomé, na esperança vaga e distante de encontrar inspiração. A porta estava aberta, mas por qualquer razão, que não podia compreender, havia uma escuridão completa. Era manhã e nada justificava aquela estranha situação. Nunca lhe acontecera entrar naquele templo dedicado ao apóstolo da dúvida sem que houvesse ao menos uma iluminação mínima. Algo se passava ali, que ele não podia compreender. Entrou no templo, que bem conhecia e sentiu uma estranha frieza. A escuridão fê-lo chocar com umas cadeiras desalinhadas que caíram com estrondo. Nesse momento, e sem qualquer motivo compreensível, João Sebastião deparou-se com um pequeno quadro representando a Adoração dos Pastores. Fixou nele a sua atenção. Nunca reparara no pormenor da representação.

De súbito, como se uma pequena luz bruxuleante se acendesse naquela escuridão reparou que, por entre os pastores com vestimentas tradicionais daquela região alemã, uma criança com a face plena de alegria acompanhava o conjunto dos pastores em movimento, orientados pela estrela de Belém. Era rara aquela representação, era rara aquela luz – uma criança ia ao encontro de outra criança. Por um momento, João Sebastião sentiu um alento especial e aquela luzinha que estava na sua frente, naquela pequena representação, transmitia-lhe um inexplicável impulso. A igreja que até ali estava na escuridão ficou iluminada, como habitualmente. A luz bruxuleante do pequeno quadro desapareceu, ou melhor, tornou-se a luz do mundo. E João Sebastião voltou para casa com um entusiasmo muito especial e reforçado. Reuniu todos os materiais que já tinha e deu-lhes outra vida. Durante um dia inteiro dedicou-se de alma e coração àquele Oratório de Natal. A resistência, a dúvida, a incerteza desvaneceram-se. E quando o novo dia nasceu, João Sebastião sentiu-se compensado por aquele conjunto que iria animar as comunidades de São Nicolau e São Tomé na cidade Leipzig. E aquele Natal de 1734 e o início de 1735 ficaram marcados indelevelmente na sua vida.

Guilherme d’Oliveira Martins

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