A minha Avó Leonor foi a melhor contadora de histórias que conheci. Nunca repetia uma narrativa. Para o mesmo tema escolhia várias versões, o que era uma verdadeira delícia. Claro que muitas vezes as versões tinham apenas pequenas variantes – mas os atentos ouvintes pediam que a Avó insistisse em mais este ou aquele pormenor. E dizia sempre: «quem conta um conto acrescenta um ponto…». Essa versatilidade era a mesma que nos deixava intrigados quando alternadamente ouvíamos o seu cantar brasileiro contrastante com o impecável falar de Lisboa… O certo é que havia sempre oportunidade ora para a alegria ora para o temor… Não há emoção sem esses ingredientes.
Havia dragões medonhos, labirintos aterradores, bruxedos abomináveis, ameaças terríveis; mas igualmente fadas deslumbrantes, princesas e príncipes adoráveis, heróis destemidos – e ainda pessoas normalíssimas como os empregados da fazenda de Paranaguá onde minha Avó nascera, os gendarmes que conhecera em Laeken, onde vivera, a doceira de Bruxelas fabricante do melhor mil-folhas, as precetoras, as “nannies”, as professoras, as colegas de escola das mais diversas nacionalidades com quem aprendera… Ah, e havia ainda milhentos animais – desde cãezinhos simpáticos, saguins metediços, papagaios mais ou menos inconvenientes, para não falar de cobras nas chácaras (enroscadas nos locais mais inesperados) ou de jacarés na grande fazenda…Compreende-se que houvesse tanta matéria para alimentar histórias extraordinárias…
Nas férias de Natal, havia especiais oportunidades para ouvir tão fantásticos relatos em que a realidade e a ficção se ligavam. E se não houvesse tema, haveria o relato de longas viagens transatlânticas. Não esqueço que, quando vi «E la Nave Va» de Fellini, encontrei muitas das personagens das viagens de minha Avó. Era a especial magia, uma aura ligada à arte em estado puro – simbolizada pelo paradigma não de Edmea Tutea, mas de Eleonora Duse, nome sublime que a Avó considerava também como seu. De facto, seus pais desejaram que se chamasse Eleonora, mas o oficial do registo civil do Paraná preferira a versão mais comum, distante das referências à grande atriz. Quando em cada Natal as luzes do presépio eram inauguradas, com especial pompa, iluminando um conjunto muito diverso de figuras de feltro, feitas com esmero pelas alunas de meu Avô de Língua Pátria, História e Geografia, já sabíamos que havia oportunidade para que cada um daqueles pastores, lavadeiras, músicos, carpinteiros, aguadeiros e tudo mais – além dos Magos, naturalmente – pudesse ser centro de uma história fantástica. Em regra era a oralidade que prevalecia, como nos tempos dos aedos, mas em determinado momento vieram até nós Selma Lagerlöf ou Edmundo de Amicis. E então nasceu outro prazer – o de ouvir ler, pausadamente, cada uma dessas narrativas mágicas e antigas… E aí ouvimos ler: “Lembro-me bem da avó a desfiar histórias, umas após outras, de manhã à noite, enquanto, nós, as crianças, a ouvíamos muito quietas, sentadas a seu lado. Era uma vida esplêndida!”…
Descobrimos então uma grande escritora a lembrar essa experiência única de contar histórias e de as transmitir pelos séculos dos séculos. E ouvíamos maravilhados: “À entrada de Belém, junto à porta principal da cidade estava de guarda um legionário romano, revestido de armadura e elmo. Da ilharga direita pendia-lhe uma espada, e na mão segurava uma lança. Naquele posto ficava o dia inteiro, quase imóvel, chegando a parecer uma estátua de ferro”… Tempos distantes, figuras de sonho, apelo à imaginação… Nessa narrativa, havia um menino de três anos vestido apenas com uma pele de ovelha, que brincava só, e que chamou a atenção do normalmente distraído soldado por ajudar uma abelha e por se encarregar de cuidar dos lírios do campo. E lembrou-se de uma tremenda profecia: “Se uma criança consegue impossíveis, é porque se aproxima um período terrível. A paz dominará todo o orbe e o dia da guerra nunca chegará!”. Acontece que num dia muito quente, em que o sol abrasava, o legionário quase a desfalecer foi ajudado por aquele menino especialmente estranho, com a dádiva de um pouco de água para se dessedentar. Num primeiro momento, o soldado quis recusar, expulsando a criança inoportuna. Mas subitamente um golpe mais intenso de calor levou o legionário a aperceber-se de que a sua vida estava em risco se não bebesse um pouco daquela água e aceitou a dádiva da criança. Considerou, porém, que tal fora um sinal de fraqueza da sua parte – de que não se perdoava. Veio então a decisão tremenda do rei Herodes da condenação das crianças inocentes. Haveria uma grande festa na cidade de Belém, fechar-se-iam as portas da cidade e seria executada a terrível sentença. O legionário viu então a hipótese de reparar a humilhação de ter sido ajudado por aquele pedaço de gente… «Por ordem do rei, a festa deveria realizar-se na galeria superior, e para esse efeito fora ela transformada em florida alameda do mais belo dos jardins».
As mães trouxeram consigo os seus filhos, despreocupadas. Ao comprido das paredes da galeria, escondida pelas grinaldas festivas, estava uma fila de soldados armados. Os pequenos foram perdendo o acanhamento, e começaram a correr e a saltar em grande algazarra. Até que um dos meninos, mais afoito, se aproximou dos homens armados, tocando num deles nas pernas e nas sandálias. Esse foi o detonador bárbaro e com fúria indescritível os militares atiraram-se sobre as crianças, agarrando-as e arremessando-as por cima da varanda. “Durante a confusão que se estabeleceu, enquanto ecoavam gritos horríveis e se perpetrava o mais desumano e cruel dos crimes, esperava imóvel, no alto da escada que dava acesso à galeria, o soldado que costumava fazer guarda a uma das portas da cidade”. Nós ouvíamos a história pregados às cadeiras – plenos de compaixão perante tão ignóbil injustiça. Alguns, lembrados de um poema de Miguel Torga, imaginávamos o rei Herodes de tranças e olhar façanhudo. E aguardávamos por saber qual a atitude do sentinela – e qual o destino do pequenito… Pausadamente, a leitura continuava: o militar viu que uma mulher conseguira deitar mão ao filho e aprestou-se a fazer-lhes frente e a impedir a passagem. Mas uma dor tremenda num dos olhos, precedida dum zumbido, incapacitou-o de agir. Uma abelha interviera naquele momento crucial, para desespero do soldado. E os fugitivos passaram. No dia seguinte, as portas da cidade foram reabertas. Mas havia que encontrar os fugitivos.
Então o legionário viu um homem e uma mulher que caminhavam apressadamente. Ele trazia um machado. Ela não trazia o manto do modo como usavam as mulheres de Belém, mas atirado sobre a cabeça assim esconderia o filho, e quanto mais se aproximavam, mais o soldado percebia que a criança era, pela altura e pelo talhe, a do dia anterior. O casal chegou junto do guarda e este intimou a mulher a mostrar o que escondia no manto. O homem disse que iam para o campo e levavam pão e vinho para a jorna. O legionário insistiu para que a mulher mostrasse o que tinha. O homem insistiu para que os deixassem passar e ergueu o machado. Mas a mulher avançou.
Era o climax da história. A Avó fazia uma pausa. Olhou-nos e leu: “Com um sorriso confiante, a mulher voltou-se para o soldado e atirou para as costas a ponta do manto. No mesmo instante, o soldado recuou e fechou os olhos ofuscado por luz intensa”. O que a mulher trazia irradiava uma claridade deslumbrante. E o legionário percebeu que era um ramo de lírios e era impossível fixá-los tal a luminosidade que emanavam…
Atónito, remexeu nos lírios e não teve outro remédio senão deixá-los passar. Era capaz de jurar antes que ali estaria uma criança… Nisto, ouve grande alarido, pedindo que aquele casal fosse impedido de sair, pois apurava-se que levavam mesmo o menino suspeito… Como era possível ter voltado a deixar fugir essa criança?… E de cabeça perdida, tomou o cavalo de um beduíno e iniciou uma perseguição desenfreada. Sem sucesso percorreu muitos quilómetros até à exaustão, até que desistiu da desfilada e propôs-se descansar um pouco numa gruta fresca. Com estranheza encontrou à entrada viçosos lírios de uma beleza única. E, para sua grande surpresa, ao entrar, descobriu que ali estavam, à sua mercê, deitados a dormir, incapazes de se defender os três fugitivos procurados. «Rápido, o soldado puxou da espada, inclinou-se sobre o menino adormecido e, com todo o cuidado, apontou-lhe a arma ao coração, a fim de o matar de um só golpe». Com uma alegria mórbida descobriu que, afinal, aquele pequeno era o mesmo que brincava com abelhas e lírios do campo… Herodes recompensá-lo-ia se apresentasse a cabeça da criança.
Seria, por certo, promovido a comandante da guarda de honra. Agora já nada podia impedi-lo. Na mão tinha um belo lírio colhido à entrada, mas depressa se apercebeu que dentro da flor havia uma abelha que rodopiou à volta de sua cabeça. Então o legionário teve um rebate de coração. Lembrou-se de tudo o que tinha acontecido… E até do momento em que o menino o salvara de insolação…
– Não posso matar quem me salvou a vida. Até a abelha e os lírios foram gratos. O pequeno acordou entretanto e fitou-o com olhar muito doce… O legionário então “beijou-lhe os pés e, recuando devagar, saiu da gruta, enquanto o menino o olhava, sorrindo, sorrindo sempre, com os seus olhos de criança, grandes e admiráveis”…
E assim mesmo a minha Avó continua a contar-nos as suas histórias maravilhosas.
Guilherme d’Oliveira Martins