Notícias

CONTO DE NATAL 2015

ERA VÉSPERA DE NATAL e as crianças foram buscar ao oratório o mais bonito Menino Jesus que lá encontraram para completar o magnífico presépio, que abundava em todas as figuras tradicionais.

   A memória da casa dizia que a imagem era do século XVIII e que provinha da oficina de Machado de Castro. Era uma figura frágil, em tudo semelhante à que tinham visto no célebre presépio da Basílica de Estrela. Com que alvoroço se aperceberam dessa circunstância quando os confrontaram: o mesmo panejamento, a mesma pequena manjedoura, idêntico semblante… Como era diferente da irmãzinha quando nascera há seis meses… Os artistas têm dificuldade em representar recém-nascidos, por isso os Meninos barrocos já estão adiantados na idade. A imaginação dos artífices permite, porém, a subtil beleza da representação. É a vida que ali está, plena de contentamento e de esperança. Como quis Francisco de Assis, o presépio representa o princípio e a existência humana, que justifica o Mistério supremo da Encarnação. Tudo ali está, anunciado. Quase sem querer lembram-se do drama dos refugiados do Médio Oriente, ao ler o relato de Lucas, sobre as portas que se fecharam a Maria e a José. A história repete-se. E nessa recordação não está a placidez de uma história irreal, mas a invocação do mundo tal como é, com as suas contradições e a procura dos outros. A atualidade do presépio está na exigência de recusar a indiferença e de cultivar o amor do outro e do diferente.

   Por um momento, ao trazer aquela pequena imagem do Menino Deus para o presépio, houve quem se lembrasse dum velho poema esquecido do século XVII, que é a um tempo uma metáfora de humor e uma procura do mundo. O humor permite entender melhor quem somos, não nos levando demasiado a sério. Filipe Néri, o santo italiano, sempre fez questão de manter os seus companheiros com a genuína alegria do bem-fazer. E que extraordinária imagem a de ver uma criança a sorrir. E que fantástica oportunidade a de vislumbrar alguém com a alegria verdadeira de gozar a beleza da criação… Como é bom podermo-nos entregar uns aos outros com verdadeiro sentido de humor. Naquela noite alguém foi buscar um livro muito velho, com um título estranho: «Fénix Renascida» e começou a ler um poema antigo com título bizarro: «Ao Menino Deus em Metáfora de Doce», escrito talvez por um tal Jerónimo Baía. E como começa? Como se fossemos pela rua despreocupadamente, ouvindo a vozearia da gente que passa, a começar nas vendedeiras: « – Quem quer fruta doce? / – Mostre lá! Que é isso? / – É doce coberto; / É manjar divino. / Vejamos o doce; / Compraremos todo, / Se todo for rico». E as crianças lembraram-se, não do presépio, mas da mesa cheia, como de costume, e que se anunciava para o dia seguinte: sonhos, fatias douradas, azevias, broas de milho, morgados, ovos-moles, pão de ló, toucinho do céu, castanhas doces, caramelos, pudim do Abade de Priscos, mousse de chocolate, leite-creme, bolo-rei, a rodear todos os outros manjares desde o peru ao bacalhau… Diz-se que o bolo-rei provem da antiguidade romana, quando, no Solstício de Inverno, se decoravam os bolos comemorativos com frutas cristalizadas de cores garridas, que prenunciavam uma colheita abundante para depois da invernia. Tudo veio à lembrança naquela metáfora de doces, e quase se esqueciam do Menino, do presépio e do poema… « – Venha ao portal logo; / Verá que não minto, / Pois de várias sortes / É doce infinito. / – Desculpa, minha alma. / Mas ah! Que diviso?! / Envolto em mantilhas, / Um Infante lindo!». Agora, sim, todos voltavam a olhar o Menino de barro, que iria estar no centro do presépio.

   E então, de súbito, todos começaram a perceber o jogo de palavras. O poeta de seiscentos fala do Menino como «doce coberto», como «manjar divino». E pergunta como é doce, se ele ignora o prodígio… «Não sabe o mistério? / Ora vá ouvindo»… E, nesse ponto, a metáfora de doce torna-se uma peregrinação pelos conventos de Lisboa, daqueles onde se faziam as melhores iguarias com a gema dos ovos, enquanto as claras serviam para engomar, para branquear ou até para bater em castelo… «Muito antes de Santa Ana, / Teve este doce princípio, / Porque já do Salvador / Se davam muitos indícios. / Mas na Anunciada dizem / que houve mais expresso aviso, / E logo na Encarnação / Se entrou por modo divino». Vindos do Campo de Santana, recorda o poema a Mãe de Maria, e chegados próximo de Valverde, onde hoje é a Avenida, o Largo da Anunciada lembra a Anunciação feita pelo anjo Gabriel – Avé, ó cheia de Graça… O poema conduz-nos imaginosamente pela toponímia dos conventos e pela história do Menino. E no anúncio feito a Maria invoca-se o lugar da Encarnação, nas portas de Santa Catarina, onde está o Chiado atual, passando-se ao tempo de esperanças, que recorda, mais abaixo, o convento às portas da Madragoa. Mas a viagem lisboeta é errática, para poder jogar com a designação conventual e a vida de Cristo. «Esteve pois na Esperança / Muitos tempos escondido; / Saiu da Madre de Deus / Depois às Claras foi visto. / Fazem dele estimação / As freiras com tal capricho, / Que apuram para este doce / Todos os cinco sentidos». Compreende-se muito bem o jogo de palavras. O Menino Deus é comparado a um pequeno doce, simbolizado na alegria do tempo e na promessa da esperança. Mas «no Calvário / Terá seu termo finito, / Sendo que no Sacramento / Há de ter novo artifício». Apesar de toda a alegria presente na invocação, importa lembrar o sacrifício supremo do Salvador, que dá sentido à esperança do presépio. «Que seja doce este Infante, / A razão o está pedindo, / Porque é certo que é morgado, / Sendo unigénito Filho! / Exposto ao rigor do tempo, / Quando tirita nuzinho, / Um caramelo parece / Pelo branco e pelo frio».

   As crianças sentem compreender o que é uma metáfora – uma comparação, às vezes algo forçada. Já ouviram falar do morgado, o doce de amêndoas, que aqui representa o Filho de Deus e depois chegaram ao delicioso caramelo. Mas onde quererá chegar o poeta, por que razão insistirá ele em comparar o Menino a vários doces? Há um caminho que primeiro segue pelo nome dos conventos a vida do Redentor e agora compara-se o pequeno às iguarias preparadas cuidadosamente nos conventos. «Tão doce é que, porque farte / Ao pecador mais faminto, / Será de pão com espécies, / Substancial doce divino. / É manjar tão soberano, / Regalo tão peregrino, / Que os espíritos levanta, / Tornando aos mortos vivos». O poeta liga as imagens jocosas ao sentido mais sério da divina Providência. O Menino Deus é, assim, um verdadeiro acepipe espiritual, que as crianças começam por associar aos doces magníficos que povoarão a mesa nessa noite natalícia, mas deve ser visto como outro e autêntico motivo de consolação. E essa é a consolação que lembra o monge calabrês Joaquim de Flora – das três Idades, do Pai, do Filho e do Espírito – e o Pobre de Assis que concebem as iguarias como motivo de partilha entre todos, como no dia do Espírito Santo, em que a igualdade é plena e em que se coroa um Menino, para demonstrar que é a recusa do poder e a pobreza em espírito, a sobriedade e a justiça que se enaltecem. «Tão delicioso bocado / Será de gosto infinito, / Manjar real, verdadeiro, / Manjar branco, parecido! / Que é manjar dos Anjos, dizem / Talentos mui fidedignos, / Por ser pão de ló, que aos Anjos / Foi em figura, oferecido».

   Quem é, afinal, o Menino Deus em metáfora de doce? Naquela noite, nos momentos finais de fazer o presépio, todos puderam perceber, a propósito de um estranho poema de ironia, humor e força espiritual, que a iguaria simbólica daquele Menino significava que todos os prazeres da festa natalícia apenas fazem sentido se puderem referir-se ao Menino Deus, como alimento espiritual e exemplo, sendo partilhados, no convívio, na troca, nos dons… Em lugar dos velhos sacrifícios primitivos das sociedades arcaicas, o tempo novo significa o encontro com Alguém que assumiu a natureza humana, foi condenado como inocente, em vez de uma distância insondável e caprichosa, fazendo da dignidade humana um elo universal de respeito e amor.

Guilherme d’Oliveira Martins

Subscreva a nossa newsletter