A Vida dos Livros

Revista “Colóquio – Letras”

O número 202 da revista “Colóquio-Letras” (Gulbenkian, 2019) é deliciosamente ilustrado pelo Herbário de Lourdes Castro e começa por um texto inesquecível de Agustina.

UM MONÓLOGO A DOIS
“Correspondências” é o prato forte do último número da revista “Colóquio – Letras” (202, setembro – dezembro de 2019). Num tempo em que a correspondência está a sofrer uma profunda mudança, pela emergência das novas tecnologias de informação e comunicação, do correio eletrónico, da internet e da digitalização, é essencial lembrar o significado da comunicação escrita. Como afirma Marcello Duarte Mathias: “a correspondência é um monólogo a dois; o diário uma correspondência a várias vozes. Ambos apresentam, contudo, um traço comum: são formas disfarçadas de autobiografia, porquanto a procura que lhes subjaz obedece a uma idêntica demanda de identidade – uma mesma realidade focada de ângulos diferentes. Ou, dito de outro modo, singularidade de testemunhos que equivalem a uma semelhante aventura de espírito”. Veja-se, aliás, a lista de exemplos dados por Miguel Real relativamente ao uso da correspondência na cultura portuguesa: Pero Vaz de Caminha na descoberta do Brasil apresenta uma “carta civilizacional”; Afonso de Albuquerque e António Lobo Antunes, cartas de guerra, em momentos e com motivações muito diferentes; Wenceslau de Morais, cartas sobre a saudade; Frei António das Chagas e o Padre António Vieira, cartas espirituais; Mariana Alcoforado e Eça de Queiroz, cartas de amor; Luís António Verney, Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa, missivas sobre o atraso português. Os exemplos ilustram a natureza e a importância da correspondência. Por muito que oiçamos queixas sobre o vazio criado pela ausência da correspondência tradicional, a verdade é que teremos de encontrar novas formas de registar esses diálogos, indispensáveis para melhor nos compreendermos. É verdade que há riscos fortes. Marcello D. Mathias diz mesmo: “com o desaparecimento das cartas desaparece de igual modo um estilo de vida, a par de espólios e arquivos que lhes dizem respeito – é toda uma prática civilizacional que se perderá. A título definitivo”. Temos, de facto, de ter isso em consideração, mas certamente, encontraremos novos modos de fixar a necessária comunicação, que corresponde a uma verdadeira demanda de identidade.

O MUNDO DIGITAL
Leia-se, aliás, o texto, de grande interesse atual, de Manuel Portela intitulado “correio @ eletrónico: escrever cartas na rede”. De facto, o correio eletrónico sofre com a aceleração do tempo e com a compressão do espaço, de acordo com a lógica das culturas de rede. A distância espacial e temporal correspondente à tradicional carta de papel teve uma completa alteração de escala. A comunicação passou a ser instantânea, com consequências na linguagem, no cuidado e na clareza das mensagens, o que obriga a uma alteração radical no método e na análise. Daí que tenhamos de lidar no futuro com uma escrita e uma linguagem adaptada ao correio eletrónico. Por outro lado, “a necessidade de conexão permanente interfere com a capacidade introspetiva – limitando a conversa que os indivíduos mantêm consigo mesmos e a consequente reflexividade – e, simultaneamente, diminui a capacidade de imaginar o lugar dos outros, já que estes se fazem presentes mais como representações gráficas na interface sob controlo do utilizador do que como seres independentes dessa figuração simbólica”. Vários exemplos são apresentados pelo autor, o que contribui para se compreender não só as potencialidades mas também as limitações deste meio, que indiscutivelmente ganhará importância no futuro, terá os seus cultores e até possuirá uma nova qualidade literária. Os temas do tempo e da reflexão são cruciais quando falamos desta questão. Evidentemente que os progressos trazem mudanças profundas, como se nota em dois textos sob o efeito do tempo na comunicação epistolar, de Fernando Cabral Martins sobre os modernistas e de António Cândido Franco relativo à epistolografia negra do surrealismo. E se dúvidas houvesse, temos a publicação das cartas de Mário Cesariny e M.S. Lourenço. De facto, como “correspondências” que são, há uma grande variação consoante as diferentes gerações. E as cartas imaginárias apresentadas, da autoria de António Mega Ferreira, Rita Taborda Duarte, Nuno Júdice, Julieta Monginho, Alexandra Lucas Coelho e Afonso Reis Cabral ilustram muito bem modos muito diferentes de comunicar. É verdade que os tempos das grandes epístolas passaram, mas a necessária reflexão precisa de existir e terá, por certo, de se ir adaptando às novas tecnologias e mentalidades.

RUBEN E TORGA
E vejamos o estimulante diálogo entre Ruben A. e Miguel Torga. Antes do mais, é inesperado, mas muito atraente, considerando a riqueza cultural das duas personalidades. Cinco cartões, quatro postais, um telegrama e 34 cartas foi o que Torga enviou. E são a prova provada de uma admiração correspondida. E fica-nos na memória a afirmação de Torga, sempre exigente, sobre “A Torre da Barbela”: “confesso-lhe que ainda não consegui sair da confusão de tanto sonambulismo. O que já sei de ciência certa é que agradaram deveras os inúmeros achados expressivos que enxameiam o livro. Parei vezes sem conto no caminho, boquiaberto com a graça e a originalidade de certas maneiras de dizer. Que rica imaginação verbal a sua!”. E quanto a “O Mundo à Minha Procura”: “Você tem nele páginas admiráveis, de mão de mestre…”. E Ruben A., com um critério sempre exigente, diz ser Torga “o último grande escritor da tradição clássica da língua portuguesa. A sua contribuição criadora encerra na mais sublime forma expressões definitivas de clareza, profundidade e de valor humano”… E se este diálogo intenso e afetuoso se lê com grande agrado, perante um Miguel Torga próximo e afável (como eu próprio conheci), fica-nos a ilustração plena da força das “correspondências”. E neste ano dos centenários de Sophia e de Jorge de Sena, temos presente o filme de Rita Azevedo Gomes, no qual emerge um diálogo que confirma as considerações de Marcello D. Mathias. Este número da revista é deliciosamente ilustrado pelo Herbário de Lourdes Castro e começa por um texto inesquecível de Agustina. E assim a “Colóquio – Letras” confirma uma história de prestígio. Nasceu com a designação de “Colóquio, Revista de Artes e Letras”, por iniciativa da Fundação Calouste Gulbenkian, em janeiro de 1959, sob a direção de Reynaldo dos Santos e Hernâni Cidade e a direção gráfica de Bernardo Marques. José-Augusto França e Jacinto do Prado Coelho associaram-se à direção da revista em fevereiro de 1970. Então, autonomizaram-se a “Colóquio – Letras”, que começou a sua publicação em 1971, sob a direção de Hernâni Cidade (1971-1975) e de Jacinto do Prado Coelho (1971-84), e a “Colóquio – Artes”, também nascida em 1971 e dirigida por José-Augusto França, coadjuvado por Carlos Pontes Leça, que se publicou até dezembro de 1996. A “Colóquio – Letras” foi depois dirigida por David Mourão-Ferreira (1984-96), Joana Morais Varela (1996-2008) e agora por Nuno Júdice, desde 2009. E diga-se, o tempo das revistas de qualidade é o futuro. 

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença 

Subscreva a nossa newsletter