Ninguém poderia ficar indiferente a Cleonice Berardineli. Conheci-a, li-a, aprendi com ela e nunca a esquecerei. Foi Fidelino de Figueiredo, quem fundou uma verdadeira escola do estudo da literatura portuguesa em S. Paulo e que trouxe Cleonice Berardinelli para a ribalta. É, aliás, fundamental a carta de 1958 que endereçou à sua discípula com elementos curiosos para o conhecimento de Fernando Pessoa, ele mesmo. Dizia Fidelino: “Fomos condiscípulos no 1º ano da faculdade, que então se chamava Curso Superior de Letras. Acabava ele de chegar da África do Sul. Era alto, magro, narigudo, um pouco tartamudo e mantinha sempre uma expressão sorridente, que fazia lembrar o rir japonês, como defesa. Caminhava de esguelha, como afligido por escoliose espinal. Em breve desapareceu, talvez por não obter a revalidação dos estudos que trazia. Perdemo-nos de vista, apesar da simpatia que nos atraíra”. Depois, houve um encontro junto da igreja da Madalena, em que falaram animadamente, tendo Fidelino louvado um texto do poeta sobre o espírito provinciano – “não foi preciso mais para lhe sobrevir um acesso de timidez. Corou, enrugou mais o sorriso e partiu muito confuso. E nunca mais o vi – coisa bem explicável pelo meu exílio de 24 anos”. Nessa carta, para além do testemunho, Fidelino confirmava as fundamentais qualidades de Cleonice, sua discípula dileta, dando-lhe conselhos avisados sobre a defesa e publicação da tese. Poesia e Poética de Fernando Pessoa (1959) é, de facto, um texto muito importante – “uma exemplificação perfeita dos métodos da estilística moderna e passará a constituir indispensável instrumento para a compreensão da obra do poeta, principalmente se for articulada ao movimento poético imediatamente anterior”. E se Fidelino de Figueiredo foi o mestre essencial da mestra, não podemos esquecer o afeto que Dona Cleo dedicava ao rigor de Pierre Hourcade (lamentando não ter podido falar com ele sobre Pessoa) e à fantasia, quase loucura, de Giuseppe Ungaretti. Para Cleonice, não há conflito entre as literaturas portuguesa e brasileira. Têm em comum a mesma língua. “As pequenas diferenças que se verificam entre elas não fazem com que haja, nunca, uma dissensão. Portanto nem dissensão nem colisão”. Quando veio lecionar na Faculdade de Letras de Lisboa, a convite de Maria de Lourdes Belchior e de Maria Vitalina Leal de Matos, teve oportunidade de exprimir o maior contentamento. E lembrava as lições que recebera na sua Universidade, sob a batuta de Fidelino de Figueiredo – através das quais se apaixonou por Gil Vicente, Camões, Garrett, Herculano, e Eça de Queiroz e por Machado de Assis. Depois virá, como dissemos o misterioso Pessoa e uma relação especial com o engenheiro Álvaro de Campos. E como esquecer Vieira, “figura complexa,… mistura de lucidez e de imaginação prodigiosamente criadora”? Se a referência a Mestre Gil ficou sempre muito em evidência, Dona Cleo não esquece as representações que fez dos Autos da Alma, de Mofina Mendes e da Lusitânia, com o seu querido Manuel Bandeira, na primeira fila, a aplaudir… E lembrando intuições lapidares da professora como não trazer à baila Cesário, entre Fradique e Mário de Sá-Carneiro? Trata-se de uma espécie de ponte que anuncia o século XX, em que Fradique Mendes é muito mais do que uma criação ficcional, simboliza os seus criadores (Antero e Eça) e anuncia “Orpheu” e um novo tempo – ou não fora Caeiro fiel leitor de Cesário… Mas a preocupação fundamental de Cleonice Bernardinelli mantém-se bem viva – é indispensável que as literaturas da língua portuguesa, a começar pelas dos nossos países irmãos sejam mais conhecidas e estudadas, no seu diálogo mais íntimo e fecundo. Infelizmente, continua a haver grande desconhecimento mútuo, e todos perdemos com isso. Como afirma a querida e já saudosa Cleonice, para o caso brasileiro: a Literatura Portuguesa deve fazer parte das matérias básicas – não só “porque é a literatura mãe a primeira a exprimir-se em língua portuguesa, a que constitui o passado da Literatura Brasileira, a que preenche todo o espaço medieval anterior à nossa experiência, mas também porque é o elemento primordial de uma cultura viva, dentro da qual tomamos as nossas origens e que não pode ser excluída da nossa formação histórica”. Muito obrigado Cleonice!
O Centro Nacional de Cultura homenageia sentidamente a decana dos Estudos da Língua Portuguesa.
GOM