Chico Buarque de Holanda tem um percurso pessoal incomparável, com ele há uma especial força centrada na liberdade criadora. Músico, dramaturgo e escritor é um dos símbolos da MPB – Música Popular Brasileira. Filho de Sérgio Buarque, um dos grandes ensaístas da língua portuguesa afirmou-se através do seu próprio caminho e das suas próprias palavras. E se dúvidas houver, basta relermos “Construção”, uma obra-prima da língua portuguesa:
«Amou daquela vez como se fosse a última
Beijou sua mulher como se fosse a última
E cada filho seu como se fosse o único
E atravessou a rua com seu passo tímido
Subiu a construção como se fosse máquina
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo com tijolo num desenho mágico
Seus olhos embotados de cimento e lágrima
Sentou pra descansar como se fosse sábado
Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe
Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago
Dançou e gargalhou como se ouvisse música
E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no ar como se fosse um pássaro
E se acbou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu na contramão atrapalhando o tráfego
Amou daquela vez como se fosse o último
Beijou sua mulher como se fosse a única
E cada filho seu como se fosse o pródigo
E atravessou a rua com seu passo bêbado
Subiu a construção como se fosse sólido
Ergueu no patamar quatro paredes mágicas
Tijolo com tijolo num desenho lógico
Seus olhos embotados de cimento e tráfego
Sentou pra descansar como se fosse um príncipe
Comeu feijão com arroz como se fosse máquina
Dançou e gargalhou como se fosse o próximo
E tropeçou no céu como se ouvisse música
E flutuou no ar como se fosse sábado
E se acabou no chão feito um pacote tímido
Agonizou no meio do passeio náufrago
Morreu na contramão atrapalhando o público
Amou daquela vez como se fosse máquina
Beijou sua mulher como se fosse lógico
Ergueu no patamar quatro paredes flácidas
Sentou pra descansar como se fosse um pássaro
E flutuou no ar como se fosse um príncipe
E se acabou no chão feito um pacote bêbado
Morreu na contramão atrapalhando o sábado».
O músico e romancista brasileiro Chico Buarque é o 31.º vencedor do Prémio Camões, a mais importante consagração literária da língua portuguesa.
A decisão foi anunciada esta noite, após reunião, na Biblioteca Nacional do Brasil, no Rio de Janeiro, do júri composto por Manuel Frias Martins, professor jubilado da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e presidente da Associação Portuguesa de Críticos Literários; Clara Rowland, professora associada da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa; Antonio Cícero, ensaísta e poeta brasileiro; Antonio Hohlfeldt, professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul; Ana Paula Tavares, poeta e professora universitária angolana; e Nataniel Ngomane, professor da Faculdade de Letras e Ciências Sociais da Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo.
Criado por Portugal e pelo Brasil em 1989, o Prémio Camões tem um valor de 100 mil euros. No ano passado foi entregue ao escritor cabo-verdiano Germano Almeida.
Com a atribuição do prémio a Manuel Alegre, em 2017, Portugal chegou a igualar o Brasil no número de escritores galardoados, 12: depois de ter inaugurado a contagem com Miguel Torga (1989), o país viu serem contemplados Vergílio Ferreira (1992), José Saramago (1995), Eduardo Lourenço (1996), Sophia de Mello Breyner Andresen (1999), Eugénio de Andrade (2001), Maria Velho da Costa (2002), Agustina Bessa-Luís (2004), António Lobo Antunes (2007), Manuel António Pina (2011), Hélia Correia (2015) e Manuel Alegre (2017). Pelo Brasil, receberam já o Camões João Cabral de Melo Neto, em 1990, Rachel de Queiroz (1993), Jorge Amado (1994), António Cândido (1998), Autran Dourado (2000), Rubem Fonseca (2003), Lygia Fagundes Telles (2005), João Ubaldo Ribeiro (2008), Ferreira Gullar (2010), Dalton Trevisan (2012), Alberto da Costa e Silva (2014), Raduan Nassar (2016) e, agora, Chico Buarque, o 13.º escritor brasileiro a receber a distinção.
O Prémio Camões foi pela primeira vez atribuído a um escritor africano quando, em 1991, a escolha do júri recaiu sobre o poeta moçambicano José Craveirinha. Seis anos mais tarde foi a vez de Pepetela assinar a estreia de Angola, país que voltaria a ter a sua literatura reconhecida em 2006 com a obra de Luandino Vieira, que recusou o prémio. Em 2009, venceu o poeta cabo-verdiano Arménio Vieira, em 2013 o romancista moçambicano Mia Couto e no ano passado o romancista e contista cabo-verdiano Germano Almeida.
in Público | 21 de maio de 2019 [em atualização]
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Público