Os Sentidos de uma Viagem à Cochinchina
No âmbito da política de expansão ultramarina portuguesa, a Índia das «gemas e das especiarias» foi definida como meta a ser a alcançada, seguramente, durante a década de 1470, quando D. Afonso V reinava em Portugal. Como é sabido, um conjunto de diversas e complexas circunstâncias adiou a concretização do projeto até à época manuelina. O sucesso náutico da viagem realizada sob o comando de Vasco da Gama (1497-1499) significou o início de uma relação multissecular entre os portugueses e as gentes do Subcontinente, mas arrastaria igualmente, de modo faseado, o interesse nacional pela generalidade das regiões bordejadas pelo Índico e pelo Pacífico Ocidental. Fosse por imperativos de ordem logística ou comercial, cedo se compreendeu, tanto in loco como em Lisboa, a necessidade de ampliar os centros de presença oficial portuguesa, dando origem a uma rede marítimo-mercantil, dotada de estruturas políticas e militares de apoio, a qual se corporificou no chamado Estado da Índia.
Se o dito Estado começou a ser organizado e a dilatar-se a partir da comissão de serviço de D. Francisco de Almeida como vice-rei (1505-1509), foi o seu sucessor, o governador Afonso de Albuquerque (1509-1515) quem lhe conferiu as características geoestratégicas basilares. Fê-lo através da implementação de um conjunto de campanhas idealizadas por ele mesmo ou por D. Manuel I. A conquista de Malaca, em 1511, constituiu um dos exemplos que ilustra a coincidência entre as visões do rei e do governador. Foi a partir do entreposto malaio que se alargaram os horizontes da intervenção portuguesa rumo à restante Ásia do Sueste (continental e insular) e à Ásia Oriental. A China configurava, neste quadro, um dos espaços mais apetecíveis, pelo que, para a alcançar, era forçoso navegar ao largo das costas dos reinos do Camboja, do Champá e do Dai Viet (os últimos englobados pelo atual Vietname).
A década de 1510 ficou, assim, marcada pelo apuramento e pela circulação das primeiras informações escritas sobre aquelas paragens distantes, bem como pelos contactos primordiais com as mesmas. Tão distantes e exóticas eram elas que a memória coletiva portuguesa acabou por assimilar um dos topónimos em uso local, o de Cochinchina a um sinónimo de terra de localização imprecisa, quase mítica, mas sempre remota. Porventura, terá influenciado nesse sentido a própria história, algo errante, do termo, cuja evocação concreta foi transferida pelos portugueses, ao longo de Quinhentos, do Norte para o Sul do Vietname contemporâneo, numa opção que seria, mais tarde, partilhada pelos franceses.
Embora os portugueses nunca tenham confundido a Cochinchina e o Camboja, faz sentido empreender uma viagem do ciclo “Os Portugueses ao Encontro da Sua História” àqueles dois destinos sob o signo genérico da Cochinchina. Desde logo porque, literalmente, teremos de atravessar meio mundo para ir resgatar memórias de experiências pioneiras em regiões que, ainda hoje, se nos afiguram singulares nas paisagens e nas vivências das suas gentes. Depois, considerando também que as presenças portuguesas nos espaços vietnamita e cambojano foram moldadas por dinâmicas semelhantes. Em virtude da maior força de atração exercida por outras áreas asiáticas, sem esquecer as limitações humanas e materiais, o Estado da Índia absteve-se de ali instalar estabelecimentos oficiais. Daí que a iniciativa privada portuguesa, a cargo de aventureiros de variada espécie, tenha tido capacidade para se infiltrar e agir. Outros aventureiros, num certo sentido, foram os religiosos que introduziram o Cristianismo nos dois territórios em causa – jesuítas no Vietname, dominicanos e franciscanos no Camboja. Mesmo em terras política e juridicamente separadas do Estado da Índia, a ação dos missionários inscrevia-se no âmbito do Padroado Português do Oriente e era tutelado pelas respetivas autoridades, pelo que adquiria dimensão oficial.
O protagonismo alcançado por aventureiros e missionários, a partir de meados do século XVI, produziu impactos significativos, no contexto da expansão ultramarina. Tornou-se claro que, por via deles, marcas de influência portuguesa, umas mais perenes do que outras, podiam ser imprimidas a terras fora do domínio e da jurisdição da Coroa. O Camboja e o Vietname constituíram-se exemplos disso. Partir nessa direção e deambular por lá dar-nos-á a oportunidade de relembrar o legado português para as histórias de ambos os países, mas não só…
Qualquer viagem, as de Quinhentos e Seiscentos feitas por Fernão Mendes Pinto, Luís Vaz de Camões, Frei António da Madalena, Pe. Francisco de Pina, João da Cruz e tantos outros, aquela que realizaremos em 2017, configura uma descoberta… de nós próprios e dos outros, tanto mais quando nos afastamos da nossa zona de conforto cultural. Por muito que vivamos, no presente, num mundo cada vez mais globalizado e até padronizado, a margem de manobra para a surpresa, para a tal descoberta continua a existir. Nesse processo, de algum modo, gozaremos do ensejo de experimentarmos sensações semelhantes às dos portugueses de outrora. E ao sermos confrontados com a riqueza e a complexidade das vibrantes culturas locais conseguiremos perceber, em última análise, os motivos da frustração de projetos portugueses naquelas regiões. É essa afinal uma das grandes utilidades da História: não se trata estritamente de submergir num universo de memórias, antes de pôr o passado em comunicação com o presente, o conhecimento do primeiro ajudando a compreender a realidade dos dias de hoje…
Alexandra Pelúcia
Investigadora do CHAM, FCSH, Universidade NOVA de Lisboa, Universidade dos Açores
e Professora Auxiliar do Departamento de História, FCSH, Universidade NOVA de Lisboa
ORGANIZAÇÃO: PARCERIA:
APOIO: