A Vida dos Livros

Carlos do Carmo: Um homem na cidade

“Um Homem na Cidade” (1977) resultou de um desafio de José Carlos Ary dos Santos a Carlos do Carmo, ao encontro de compositores como José Luís Tinoco, Fernando Tordo, Paulo de Carvalho e António Vitorino d’Almeida.

AMAR A LIBERDADE

“Eu sou o homem da cidade / que manhã cedo acorda e canta, / e, por amar a liberdade, / com a cidade se levanta”. Tratava-se de assumir um modo renovado de ligar as raízes culturais da música portuguesa e as novas tendências cosmopolitas das artes, num tom popular, mas exigente. Era a cultura portuguesa que se projetava para além dos limites da inércia ou da continuidade. Afinal, ele era o filho de Lucília do Carmo, nome grande do Fado, e sucedera a seu pai, Alfredo de Almeida, desaparecido precocemente, ao timão de um dos lugares sagrados de Lisboa, “O Faia”. Sabia bem que só poderia singrar no meio artístico se representasse uma diferença substancial. Conseguiu-o até porque conhecia como ninguém as virtudes da cultura tradicional e a necessidade desta ganhar asas, para poder alcançar direitos de modernidade. Naturalmente, houve quem não entendesse, quem julgasse que havia uma espécie de desrespeito pela tradição. Mas o tempo venceu tudo. Thilo Krassmann ajudava na musica, Ary dos Santos entusiasmava-se na lógica da intervenção, contudo Carlos do Carmo compreendia bem que não poderia fazer um disco datado, mesmo que popular. Percebia o impulso, mas sabia que o julgamento do tempo iria ser inexorável – e isso seria muito mais importante dos que as incompreensões do curto prazo. E Ary dizia: “o senhor está muito exigente e até um bocadinho reacionário”. Ambos teriam as suas razões, mas no domínio artístico Carlos do Carmo tinha a razão essencial. E se dúvidas houvesse, bastaria ver como o tempo não deixou que o talento ficasse afetado pela moda passageira. E ambos ganharam, o poeta e o intérprete. O génio é, afinal, o que pode perdurar. E entende-se bem como o jovem que partiu para a Suíça em busca de uma aprendizagem de horizontes largos, pôde encontrar a qualidade dos melhores artistas do seu tempo.

CULTO E COSMOPOLITA

Era um português culto que gostava de ouvir Sinatra e Tony Bennet e que aprendeu com eles a conversar com o público e a estar em cima de um palco, a renovar a linguagem da representação. Como ensinaram os maiores clássicos, havia que saber aliar a arte, a palavra e a expressão dramática, com verdade e inovação. Sem a tentação de repetir ou de imitar, usando a língua como modo de nos entendermos melhor. “Cantar é um ato de prazer, mas sobretudo no palco, que é um constante jogo de sedução, uma troca indescritível de sentimentos e emoções”. Ouvindo coisas muito boas, aprendendo com os melhores, Carlos do Carmo sabia que fazendo mais do mesmo não ajudaria ninguém – “ouvi coisas tão boas, tão boas, que sou muito exigente em relação ao que aparece”… Luiz Gonzaga, Dorival Caymmi, Sinatra, Brel, Elis Regina e a sombra eterna da Mãe guiaram os passos do artista. Era daqueles para quem apenas havia boa e má música. “O fado tradicional merece-me um profundo respeito. (…) Em cada dez composições do Alfredo Marceneiro nove são muito, muito boas…” (Notícias Magazine, 3.11.2019). Mas não era o fado triste que lhe interessava. Conhecia bem as primeiras origens da arte. Por isso, quando Carlos Saura se propôs fazer o extraordinário filme “Fados”, houve que reinventar a dimensão do fado dançado, como manifestação artística e não como reconstituição historiográfica.

No fundo o Fado como realidade viva tem de se renovar permanentemente. Só assim pode ser fiel aos melhores de cada tempo: Armandinho, Marceneiro, Maria Teresa de Noronha ou Carlos Ramos… A genial Amália tornou-se parte de outra galáxia. “As bases musicais do fado são fado menor, que é o fado triste, o fado mouraria ou fado maior ou fado corrido, fado que é dançável. Temos três frentes. Porquê cantar sempre o fado menor?”. Mas eis que sempre ensinou a recusar a facilidade – “o fado precisa de ser apreendido, respirado, de maneira a provocar reflexão. E que seja para quem o ouve um banho de afetividade”. Homem de cultura, leitor por prazer, muito cuidadoso com a palavra e com a dicção (as palavras deveriam ser ditas e compreendidas), Carlos do Carmo escolheu quem gostava, e eram os melhores, além de José Carlos Ary dos Santos, José Luís Tinoco, Manuel Alegre ou Alexandre O’Neill: António Lobo Antunes (Canção da Tristeza Alegre), José Saramago (Aprendamos o rito), Vasco Graça Moura (Nasceu assim cresceu assim), Manuela de Freitas (Fado Penélope), Nuno Júdice (Lisboa Oxalá), Maria do Rosário Pedreira (Pontas Soltas; Vem, não te atrases), Fernando Pinto do Amaral (Fado da Saudade), Sophia de Mello Breyner, Hélia Correia, Herberto Helder, José Manuel Mendes, Jorge Palma e Júlio Pomar…

CIDADANIA CULTURAL

Foi com especial orgulho que, como presidente do júri do Prémio Vasco Graça Moura da cidadania cultural, tive o gosto de comunicar de viva voz a Carlos do Carmo que o galardão lhe tinha sido atribuído. E tenho na memória a sua reação de autêntica afetuosidade. E senti a alegria partilhada de Judite. Como afirmou o júri: “Os prémios nacionais e internacionais que obteve pela qualidade das suas edições discográficas, onde surge como um dos grandes intérpretes do fado que soube renovar, dão conta de uma das mais exemplares carreiras do panorama artístico português. Desde cedo que a sua voz soube quebrar fronteiras, atravessar gerações, tornando o fado uma interpretação artística de expressão universal. Essa expressão universal foi determinante para a candidatura do Fado a património imaterial da humanidade da UNESCO, de que Carlos do Carmo foi um dos embaixadores”. Senti, de facto, genuína satisfação da sua parte, que selou profundamente a minha amizade e admiração. Foi um ato de inteira justiça e não esqueço a referência sentida que fez à memória de Vasco, exemplo para todos. Não falámos apenas do poeta, que Carlos do Carmo cantou, mas da importância essencial da cultura como fator de enriquecimento da sociedade, de dignidade humana e de emancipação cívica. Tradição e modernidade, compreensão das raízes e audácia modernizadora, liberdade e responsabilidade, igualdade e diferença, qualidade e exigência – eis o que ligava profundamente Vasco Graça Moura e Carlos do Carmo. Num tempo em que assinalamos o centenário de Amália, em que as Artes, a Poesia e o Sentimento se têm associado no mundo largo das culturas de língua portuguesa (lembrando o Cante alentejano e a Morna cabo-verdiana – e não esquecendo que há pouco nos deixou a extraordinária artista e pedagoga, Celina Pereira), Carlos do Carmo é um símbolo que reconhecemos e que não deixaremos de lembrar sempre.

Guilherme d’Oliveira Martins

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