A LISTA DE INFLUÊNCIAS
“A minha lista, com a respetiva fundamentação, foi esta: Luís de Camões, porque como escrevi em O Ano da Morte de Ricardo Reis, todos os caminhos portugueses a ele vão dar; Padre António Vieira, porque a língua portuguesa nunca foi mais bela que quando ele a escreveu; Cervantes, porque sem ele a Península Ibérica seria uma casa sem telhado; Montaigne, porque não precisou de Freud para saber quem era; Voltaire porque perdeu as ilusões sobre a humanidade e sobreviveu a isso; Raul Brandão porque demonstrou que não era preciso ser-se génio para escrever um livro genial, Húmus; Fernando Pessoa, porque a porta por onde se chega a ele é a porta por onde se chega a Portugal; Kafka, porque provou que o homem é coleóptero; Eça de Queirós, porque ensinou a ironia aos portugueses; Jorge Luís Borges, porque inventou a literatura virtual; Gogol, porque contemplou a vida humana e a achou triste”. Ao lermos esta genealogia cultural, compreendemos a obra e o percurso de José Saramago, mas também o sentido do caminho que seguiu. Camões permite entender a gesta portuguesa, nos seus claros e escuros. O épico e o lírico retratam não apenas o desafio da demanda da Índia, mas igualmente a procura do eu e do nós e a distância entre o sonho e a realidade como no Memorial do Convento, onde a sociedade é retratada, a propósito de uma descomunal construção, só possível graças ao ouro do Brasil e à coexistência entre a riqueza e a miséria. E ao lermos Que Farei com Este Livro? podemos compreender, co Camões, a nossa panóplia de paradoxos. Portugal e os portugueses mostram-se contraditórios entre si, capazes de cultivar a ilusão, mas também de se empenharem na obra que não se fica pelas intenções. Já Vieira cria na sua oratória uma realidade em que a construção do futuro corresponde à razão temperada pela fé, num extraordinário encantamento da palavra. “É o verbo vieirino que vai ressoando no meu cérebro enquanto escrevo” – di-lo-á Saramago em entrevista ao “Correio do Minho” em 1983. E completa o raciocínio: “Pegamos nos sermões do Padre António Vieira e, para além do preciosismo e do concetismo do gozo por vezes um pouco obscurecedor do sentido, verificamos que há, em tudo o que escreveu, uma língua cheia de sabor e ritmo, como se isto não fosse exterior à língua, mas lhe fosse intrínseco”. E ouvimos Vieira no Sermão de Santo António aos peixes de 1654 no seu ritmo oral, que afeiçoa o uso da palavra escrita: “Tão alheia cousa é, não só da razão, mas da mesma natureza, que, sendo todos criados no mesmo elemento, todos cidadãos da mesma pátria, e todos finalmente irmãos, vivais de vos comer!”. É essa ligação entre os movimentos da sociedade que se torna presente na escrita amadurecida de Saramago. E não seria o Quinto Império o horizonte da sociedade humana reconciliada, com cidadãos da mesma pátria conscientes do respeito mútuo, para não se comerem uns aos outros, facto que tanto preocupa o romancista? Por outro lado, em Cervantes podemos encontrar a raiz de um teatro fantástico, pleno de prodígios, como nos momentos em que Blimunda vê dentro de cada corpo ou quando uma “jangada de pedra” se desprende, como para um mundo de moinhos de vento. Mas não é apenas D. Quixote que se manifesta, mas também Alonso Quijano, ao cair em si, procurando libertar-se, no fim da vida de uma loucura de mil sonhos. Sem Cervantes, a Península seria uma casa sem telhado? Sim, porque com o cavaleiro da triste figura passamos da fantasmagoria dos romances de cavalaria para a tomada de consciência de uma vontade que decorre da coragem de encarar a realidade tal com ela é. E a cultura ibérica manifesta-se como complementaridade entre a loucura e o bom senso, entre o continente e o mar, como condomínio entre a dureza e a abertura, entre a expressão trágica, o lirismo e o picaresco. Já em Montaigne é a singularidade que se manifesta, pondo-se a tónica na capacidade de ser cético e de se perguntar sistematicamente sobre quem somos, o que sabemos e o que fazemos. E em termos literários, no caminho do escritor, o romance torna-se meio privilegiado de expressão, como diálogo com a vida e como exigência de reflexão adequada ao movimento e à compreensão da existência humana.
REGRESSO AO “CÂNDIDO”
Já a memória de Voltaire, que tão ligado esteve, pela reflexão, aos acontecimentos portugueses do grande terramoto, corresponderia a uma exigência que deveria funcionar como fator de renascimento e de regeneração, como apelo de Cândido ao espírito de denúncia social, sem esquecer a ironia e a corajosa defesa da tolerância. Raúl Brandão representa a força da representação dos dramas humanos e a influência da grande literatura russa, favorecendo a definição dos conflitos tal como se manifestam e a tensão que resulta da complexidade de fatores que determinam a evolução humana. Como fica patente em O Ano da Morte, mas também no gradual conhecimento que se vai tendo da riqueza da obra de Pessoa, designadamente através da revelação do conteúdo da célebre “Arca”, em especial do “Livro do Desassossego”, a riqueza de conjunto da genialidade pessoana torna-se um fator de enriquecimento da criação de Saramago. Franz Kafka permite a compreensão do absurdo e do horror que se manifestam no mundo – enquanto Eça de Queirós se torna, desde muito cedo, mestre da ironia e da crítica, com as suas personagens marcantes, o que constitui uma presença constante nas referências do romancista, apesar da diversidade nos temas e no seu tratamento. Quanto a José Luís Borges é o culto do paradoxo e da complexa convergência plural de fatores no mundo da vida que se torna marcante. A realidade social tende a ser explicada por algo mais do que a análise da realidade social. Por fim, Gogol procura entender uma humanidade dominada pela indiferença e pela incompreensão. Dir-se-ia que assim seria possível superar uma sociedade sonâmbula, difícil de perceber, que obriga a recorrer a diversos pontos de vista, de modo a perceber-se o efeito da evolução do tempo e das mentalidades. E assim chegamos ao ponto em que Saramago se prepara para escrever o Ensaio sobre a Cegueira, que corresponde a uma reflexão que se encontra delineada em Cadernos de Lanzarote II: “Pensei na História e via-a cheia de homenzinhos minúsculos como formigas, uns que não cabem nas portas que fizeram, outros que arrancaram às pedreiras o mármore com que Miguel Ângelo fez o seu David, outros que a esta hora estão contemplando a estátua e dizem ‘Talvez ainda não tenhamos começado a crescer’”… E assim, à medida que a obra de foi afirmando, todos estes elementos convergiram e se complementaram…
Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença