O fantasma que encontramos hoje chama-se “Chiquinho”, nasceu em Cabo Verde em S. Nicolau, estudou em S. Vicente, regressou como professor a S. Nicolau, mas teve de partir para os Estados Unidos em busca de uma vida melhor… “A identidade cabo-verdiana não poderia ter sido decretada por nenhum poder: foi, como aconteceu com todos os povos, o resultado final de muitas interacções…”. Leia-se “A Construção da Identidade Nacional – Análise da Imprensa entre 1877 e 1975” (Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro, Praia, 2006) de Manuel Brito-Semedo. É fundamental seguir a evolução do pensamento da elite intelectual cabo-verdiana no desenvolvimento dos níveis de instrução, através do qual é possível entender a riqueza e a singularidade da cultura cabo-verdiana. Os nativistas, na passagem do século XIX para o XX, da geração de Eugénio Tavares (1867-1930), sobretudo autodidatas, passaram o testemunho aos regionalistas, de trinta e quarenta do século XX, já formados no Liceu e alguns no ensino superior, que abriram caminho aos nacionalistas, formados nas Universidades da Metrópole. Houve, assim, uma continuidade que definiu o processo de maturação, que permite hoje entender a consolidação de uma rica identidade cultural. Saliente-se o papel desempenhado pelo magistério pedagógico de Baltasar Lopes da Silva (S. Nicolau, 1907-1989) e de António Aurélio Gonçalves (S. Vicente 1901-1984) que permitiu uma sólida transmissão da mensagem identitária. Enquanto no tempo de Eugénio Tavares prevaleceu o combate contra as leis discriminatórias que afetavam o nativo, reivindicando um estatuto semelhante ao que vigorava para os habitantes dos Açores e da Madeira, o período da influência de Baltazar Lopes pretendeu definir Cabo Verde como um caso de “regionalismo europeu”. Depois, a geração de Amílcar Cabral, com Gabriel Mariano, Manecas, Abílio Monteiro Duarte, José Leitão da Graça, José Araújo, Corsino Fortes e Onésimo Silveira enalteceu a componente cultural africana, como um caso de “regionalismo africano”. A dialética afirmação / negação marcou, assim, o século XX, o que permitiu enriquecer a “identidade complexa”, e abrir o caminho da independência e da abertura cultural. Uma síntese pressupõe sempre que se afirmem e, num dado momento, até se extremem, os diversos polos em presença, o que aliás permite o enriquecimento do resultado, como acontece na “caboverdianidade” contemporânea. E assim o homem crioulo nasceu em diálogo e em confronto – que envolveram o sobressalto nativista, que se centrou valores originais, e que evoluiu para a tomada de consciência regionalista e nacionalista, que conduziu à identidade nacional. As três gerações marcantes representaram, deste modo, uma continuidade. A reclamação do estatuto de igualdade, a reivindicação da diferenciação regional e a exigência de autonomia política aparecem, deste modo, imbuídos de uma coerência que foi concretizando a construção da identidade nacional. O romance “Chiquinho” de Baltazar Lopes (1947) constitui a ilustração de uma identidade crioula dual, entre os que ficam e os que partem – e a palavra “morabeza” traduz um afeto que baseia a hospitalidade e a solidariedade. E é marcante a revista “Claridade”, de Baltazar Lopes, Jorge Barbosa, Manuel Lopes e Aurélio Gonçalves, publicada em S. Vicente, entre 1936 e 1960, por entre muitas dificuldades e vicissitudes materiais e dispersão de colaborações. O programa, no dizer de Manuel Lopes (1907-2005), era “fincar os pés na terra cabo-verdiana” e teve uma influência muito significativa no sentido de uma autêntica impregnação cívica e da procura das raízes mais fundas da cultura cabo-verdiana – “em contacto com a terra os pés se transformaram em raízes e as raízes se embeberiam no húmus autêntico das nossas ilhas”. Aí temos a modernidade crioula, ligada ao próprio e ao genuíno e ao universal, na busca da emancipação… “Você Brasil, é parecido com a minha terra. / As secas do Ceará sãos nossas estiagens, / com a mesma intensidade de dramas e renúncias” (Jorge Barbosa). Na identidade crioula, a raiz etimológica da palavra tem a ver com um permanente ato de criação. Além da geração da “Claridade”, houve outras influências: a Academia Cultivar, ainda na senda do movimento claridoso (tendo como órgão de imprensa “Certeza – Folha da Academia”, 1944, S. Vicente), a “Nova Largada” (Praia, 1958, com o Suplemento Cultural do “Cabo Verde”, com Aguinaldo Brito Fonseca, Gabriel Mariano, Francisco Lopes da Silva…) e do “Seló” (Praia, Folha de Novíssimos, 1962). “Chiquinho” põe-nos perante o dilema do ficar ou do partir – eis a grande dúvida, neste ponto do nosso folhetim…
C. Cabo Verde e «Claridade»
3 Agosto, 2023
|