SÍMBOLOS, ELEMENTOS, REFERÊNCIAS
Apresentam-se nesta exposição obras de Matisse de 1949 a 1951, que correspondem ao desenho dos paramentos para a Capela de Nossa Senhora do Rosário, em Vence. Os símbolos, os elementos, as referências são-nos mostrados através uma imaginosa técnica do recorte e por um jogo de cores que corresponde aos tempos litúrgicos e ao calendário de celebrações. Os contributos de Maria Helena Vieira da Silva referem-se aos estudos para os belos vitrais da Igreja de Santiago de Reims (1966), bem como aos painéis para a sacristia da capela da Embaixada de França no Palácio de Santos, em Lisboa (1981) e à série “Luta com um Anjo” (1992), onde é evidente o fecundo diálogo entre talento e espiritualidade. E Maria Helena explica-o: “Às vezes, pelo caminho da arte, experimento súbitas, mas fugazes iluminações e então sinto por momentos uma confiança total, que está além da razão. Algumas pessoas entendidas que estudaram essas questões dizem-me que a mística explica tudo. Então é preciso dizer que não sou suficientemente mística. E continuo a acreditar que só a morte me dará a explicação que não consigo encontrar”. Lourdes Castro corresponde ao convite que lhe foi feito para a Capela Árvore da Vida do Seminário Conciliar de Braga, desenhando quatro paramentos, em elementos naturais, algodão, linho, seda e lã, ligados às quatro estações do ano, com belos peitorais ornamentados com lâminas de ágata em cores diferentes conforme os diversos momentos litúrgicos… A mostra significa um encontro inesperadamente fecundo – e a sua referência neste texto tem a ver com Lourdes Castro, que representa um elo que articula de um modo muito intenso as obras apresentadas – que, valendo por si, ganham um sentido especial neste diálogo. E a ideia de “brincar diante de Deus” tem a ver com a essência da palavra brincar, de origem latina, do verbo “vincire”, que significa seduzir, encantar, donde provem “vinculum”, que significa ligação, e também está na origem da palavra “brinco”, símbolo de fecho e de sedução. Brincar é sinônimo de divertir-se e este divertimento liga-se à essência da cultura e da arte, e à busca da alegria genuína do “riso de Deus”. Romano Guardini afirma, por isso, que «viver liturgicamente, é (…) tornar-se uma obra de arte viva diante de Deus. É cumprir a palavra do Mestre e “fazer-se criança”». Afinal, «não é trabalho, é jogo. Brincar diante de Deus. Não criar, mas ser cada qual uma obra de arte, eis a essência íntima da liturgia».
UM AGREGADO DE MIL COISAS…
E a “Luta com um Anjo” de Maria Helena Vieira da Silva permite recordar o “Anjo de Berlim” de Lourdes Castro, que se encontra na Capela do Rato, em Lisboa, graças à iniciativa de José Tolentino Mendonça. Tudo nasceu num Natal de neve em Berlim e numa ideia partilhada com Manuel Zimbro – sobre a qual escreveu Almeida Faria. O anjo foi colocado numa janela e foi iluminado. E tornou-se uma sombra viva em diálogo com as outras luzes da cidade. Em entrevista recente, Lourdes Castro disse: “Pergunto sempre: ‘O que somos nós senão um agregado de mil coisas?’ Não há ‘eu’, somos tudo à la fois. Às vezes pergunto: ‘Mas foste tu que escolheste o sítio para nascer? Foste tu que escolheste o pai e a mãe?’ Não, a gente tem o pai e a mãe que tem. Nasci aqui, mas não fui eu que escolhi nascer aqui. Nasci. O que somos senão um agregadozinho no meio disto tudo? Somos tudo e somos nada. E isso é fundamental para a gente não estar agarrada a nada. As pessoas pensam que são qualquer coisa. Mas depois vão para a escola e aprendem. E depois há um tio e uma tia, há a paisagem que também entra em nós. E o que vai entrando também é conforme o que já temos dentro. É assim que a gente se vai formando. E somos isto que está aqui, mas não somos nada de especial. Somos um agregado de causas e efeitos. Vamo-nos construindo” (Expresso, 31.8.2019). A cultura, a arte, a vida são, com efeito, sempre construções. E ao ler esta passagem, lembrei-me, naturalmente de José Escada (que se encontrou com Lourdes Castro no projeto “KWY” e que foi partilhando essa ideia). Segundo José-Augusto França, Escada “escrevia o desenho” e tinha uma especial maturidade entre os seus colegas do grupo parisiense (René Bertholo, Christo, João Vieira, Costa Pinheiro, Jan Voss, Gonçalo Duarte), uma “delicada solução de uma pintura pessoal numa espécie de ‘simulação caligráfica’”. E quanto às composições feitas de pequenos elementos, disse um dia «ter-se inspirado no último verso de um soneto de Camilo Pessanha “conchinhas, pedrinhas, bocadinhos de osso”». Depois, voltou ao figurativo – paisagens, cabrinhas, cães. Os seus amigos reconheceram uma espécie de regresso à descoberta da contemplação. E assim, depois de uma certa turbulência, transmite-nos serenidade e paz… E António Alçada Baptista escreveu: «Não sei se, na minha geração, alguém sofreu com tanta violência o embate entre a lucidez e a clarividência perante o grande projeto que foi prometido ao homem e a mediocridade dos pesos interiores intransponíveis e mais dos bloqueios das circunstâncias que eles semearam à nossa própria volta»… Se associo Lourdes Castro e José Escada (que, no início, fizeram juntos uma exposição no Centro Nacional de Cultura) é porque, nas suas diferenças fundamentais, há pontos de encontro, não só pessoais, mas de espírito e de procura da transcendência da arte.
GRANDE HERBÁRIO DE SOMBRAS
A paisagem natural da Madeira, que rodeou Lourdes Castro sempre, é uma paixão que a acompanha. Veja-se a série “O grande herbário de sombras” (1972) e percebemos que há uma permanente procura das formas essenciais e da projeção da natureza e das pessoas na memória perene. É fantástico percorrer as obras que estão na Fundação Gulbenkian e tudo o que tem exposto. Agora mesmo, o último número da “Colóquio Letras” apresenta-nos belos desenhos de Lourdes Castro. Não se trata de referências estáticas, há sempre a ideia fascinante de um teatro de sombras – e, assim, regressamos à essência da palavra brincar, como sinónimo de criação. Serão sempre sombras à volta de um centro. Ao plexiglas recortado, sucederam as sombras bordadas em lençóis – na extrema leveza das sombras que se fixam, mas que estão sempre a mudar. O grande herbário nasceu de um desconsolo grande perante a mostra no Louvre do herbário de Rousseau. E lembrando-se da vitalidade natural da Madeira começou a fazer um herbário digno desse nome – mangueiras, bananeiras, cana-de-açúcar, magnólias…E vêm à baila os lemas de vida de Lourdes Castro: “Grava para sempre a alegria na fachada de tua casa” (“Cloue à jamais la joie au front de ta demeure”, como encontrou em Paris na rue des Saints-Pères). E há tempos em que se torna necessário dizer: “Caminha como o teu coração te leva”… E assim se pode entender como “A arte e a casa e o jardim e mais isto e mais aquilo, é tudo respirar. É respirar à sua maneira. Não é o caminho, porque isso depois, o caminho… Como é que a gente respira?”
Guilherme d’Oliveira Martins
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