Agustina Bessa-Luís é no panorama da literatura portuguesa um caso especial. Lendo-a e em longas conversas com Alberto Vaz da Silva foi-me fácil compreender o carácter inconfundível e fulgurante da criação literária e cultural de Agustina.
ROMANCISTA MARCANTE
Nos alvores da revista “O
Tempo e o Modo” houve debates épicos sobre a importância da romancista
de “A Sibila”, de “Os Incuráveis” ou de “O Manto”. Foram usados
argumentos ideológicos e literários. E com a evolução do tempo ficou
demonstrado que a sua escrita marcou o panorama cultural português,
pelas qualidades literárias, mas também pelo modo de descrever a vida. A
sua escrita densa, a interrogação permanente do género humano, o
confronto entre as raízes e as marcas inexoráveis do tempo, o culto das
contradições e dos enigmas, tudo nos leva, enquanto leitores da sua
vasta obra, a uma relação contrastada entre permanências e mudanças
profundas, tendo como ponto de partida o encontro de valores,
personalidades, interesses, circunstâncias. Foi essa capacidade de
recusa do esperável ou das receitas repetidas que apaixonou literária e
culturalmente o grupo inicial de “O Tempo e o Modo”, ciente de que
estava longe das tradições da genealogia camiliana, da omnipresença
queirosiana ou, naturalmente, da lógica realista, e mais perto de uma
tendência para arejar a literatura no sentido da compreensão da
singularidade da existência e da influência de novos ventos.
Contudo, como afirmou Manuel Poppe, a propósito de “O Manto”: Agustina Bessa Luís permanecia como “o caso mais importante da nossa atual literatura em prosa de ficção, e um dos casos mais sérios da nossa literatura de sempre” (nº 1, 1963, p. 79). Num sentido coincidente, quando lemos os testemunhos de escritora, compreendemos que essa qualidade e essa originalidade vêm da procura da razão de ser da realidade humana. Dostoievski era o autor que mais apreciava, ao lado de Kierkegaard. “Crime e Castigo” era para a escritora uma obra maior. E no seu percurso individual entendeu bem “O Jogador”, sendo ela filha de um jogador, com todas as vicissitudes inerentes a uma tal experiência. Daí a recusa pessoal da dependência das salas de jogo e da lógica da sorte e do azar… “É a existência que luta com a existência”. O romance tem de lidar com esse confronto. E sente-se a dualidade entre os sentidos e a aspiração do infinito, como dirá em entrevista a Anabela Mota Ribeiro. A cabana de Kierkegaard é claramente preferida ao palácio de cristal de Hegel e daí as múltiplas incertezas e sobressaltos de ritmo e de estilo que encontramos na narrativa de Agustina, que mais não são do que expressão da própria imperfeição humana. O percurso da romancista é, assim, por si mesmo, inconformista e contraditório. “O humano, para se reconciliar com a própria natureza, nega a própria sabedoria” – afirmando em “Um Cão que Sonha”, surpreendentemente: “Nasci adulta, morrerei criança”. Como? Através do apuramento da atenção, que é domada ao longo da vida, com perda evidente de virtualidades. Agustina fala da descoberta do mundo e da linguagem e lembra que “se vive todos os tempos ao mesmo tempo”.
DESVENDAR ENIGMAS
À medida que o tempo passa,
vai prevalecendo a banalidade, e é essa mesma que importa contrariar. E,
chegamos à presença dos enigmas, que preenchem o mundo romanesco de
Agustina, importando ter em consideração o que a própria sempre disse:
“Eu não aprecio enigmas, gosto de desvendar os enigmas (…) Quando
aparecem enigmas, corro a resolvê-los! Quem vive na província tem muito a
noção do enigma a resolver. E num plano mais mesquinho, está incluído
na convivência da vizinhança, de saber o que se passa, entrar na casa
dos outros, na confiança dos outros. (…). No fundo é esclarecer o
mistério humano” (para citar a entrevista já referida). E eis a chave da
oficina da romancista, percebendo-se como é difícil ensinar o que é o
amor, sem cuja compreensão não se entendem os caminhos da paz. A atenção
à realidade que a cercava permitia-lhe seguir os vários caminhos que a
vida nos reserva. “Precisaria de viver 300 anos para fazer tudo o que
gostaria de fazer”. E Agustina confessa assim o seu apego à complexa
realidade humana. Daí estar sempre disponível para, pelo menos em
imaginação, partir para um outro destino. E nessa disponibilidade apenas
precisaria da memória para levar consigo. Essa era a verdadeira
matéria-prima que constituiria o barro do oleiro em cima da bancada para
ser moldada na roda, com o uso da imaginação. De facto, as musas são
filhas da memória, e esta com a inteligência e a vontade, constitui o
conjunto das virtudes cardeais… Se a pessoa humana tem consciência do
que distingue uns dos outros, a verdade é que à medida que a história
evolui e se civiliza toma consciência de que o outro deixa de ser
inimigo. Contudo, ao olharmos os acontecimentos mais recentes,
percebemos que a relação conflitual regressa. À medida que a humanidade
pensa e se civiliza, o outro deixa de ser inimigo, passando a ser
diferente, e pode ser possível pensar num sentido de paz… Mas como
deixar de considerar a paz como uma convenção? Como entender a paz como
um valor, em lugar de uma realidade apenas possível nos cemitérios?
OLHAR OS PARADOXOS
Hobbes ou Rousseau quem terá
razão? O lobo do homem ou o bom selvagem? Somos sempre tudo isso,
paradoxalmente. A humanidade corresponde à coexistência desses elementos
que determinam a perversidade da vida. E o universo romanesco de
Agustina considera o contraponto entre a perversidade reflexiva e uma
perversidade ativa. “Os sentimentos são como um bailado: servem para dar
um colorido àquilo que é muitas vezes difícil de exprimir e muitíssimo
difícil de relacionar através das palavras”. E Agustina confessa ainda
que «“A Sibila” foi produzida num transe agudo de memória. Todo esse
mundo até aí baço e repartido pela pequena história doméstica tomou
ascendente sobre a memória. Os personagens que eram só pitorescos ou
afetuosos, ganharam um recorte transcendente, que os libertava da
simples função humana”. Aqui está a explicação cabal do processo criador
– tudo nasce numa lembrança, depois essa referência caseira torna-se um
momento digno de invocação moral, e então a circunstância projeta-se
num episódio romanesco, que a memória eterniza… Não há romance sem
projeção da memória…
Guilherme d’Oliveira Martins
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