AS CORES MÁGICAS DO ALGARVE
Continuo com os livros. Vim à Feira do Livro, para celebrar sessenta anos dos Clássicos da Fundação Gulbenkian – como sinal de que os grandes textos sobrevivem para além dos episódios passageiros. Mas trouxe nos olhos as cores mágicas do mar do Algarve e os ecos das palavras de Teixeira-Gomes. Ainda é Agosto, como recordei com Nuno Júdice, quando nos encontrámos. E releio. “O calor abateu com o declinar do Sol que desaparece quando aproamos à barra. Como se extingue o braseiro no vasto disco de bronze amarelo assim se afogou o Sol em cinzas ao resvalar no polido oiro pálido do céu. Descobre-se a curva inteira da baía; mas a atmosfera perde a sua jubilosa limpidez, satura-se a humidade que a repassa de tons cetíneos e esfuma-se a poente de puídas cambraias arroxadas. A superfície do mar embebe-se de violeta, nas restingas da barra, a água rola espumas de arco-íris. O ar arrefece sem que bafeje o mais ténue sopro de arejo”.
Como esquecer estas palavras inapagáveis numa paisagem às vezes tão distraidamente olhada por tantos forasteiros. Desde o azul cobalto que avisto da minha janela ao roxo sombrio que faz realçar o “azul-verdoso” dos campos, continuo a recordar a descrição sentida. “A luz parece morrer numa atonia de pérola sem brilho; mas à revivescência do crepúsculo forra-se inesperadamente o horizonte do purpúreo damasco-escuro lavrado a fogo. Nesse plano ardente as altas serras do Algarve, que fecham a bacia do rio, ampliam-se e endurecem tornadas em maciço vidro fosco. A noite cresce do oriente com asas tenebrosas de morcego; esvai-se o crepúsculo e a escuridão cristaliza”. Avizinha-se a vila. Olham-se os “retalhos de papel furado por luzes cujos trémulos reflexos penetram profundamente no coração da água. Suspiram as estrelas no cristal negro do céu”. Estamos perante uma das invocações mais belas da literatura e da língua portuguesas, saída da oficina magistral de um artista espontâneo e cultivado. E nesse barlavento é o Algarve todo que se encontra, a ilustrar a vida, a memória, a paisagem. Que é a paisagem senão a expressão do encontro entre a vida e a humanidade? Ou não estivéssemos na convergência do Mediterrâneo e do Atlântico, ou, se quisermos, no mediterrânico atlântico – que Teixeira-Gomes não cessaria de recordar até aos últimos dias da sua vida em Bougie.
PATRIMÓNIO E CULTURA EM PLENO
Tenho insistido nesta noção ampla de património e de cultura, envolvendo a relação das pessoas com o meio natural, bem como a compreensão da arte como capacidade de olhar e entender o mundo e a vida com olhos de ver. É a vida que importa e a língua como consequência natural dessa vitalidade. E nas palavras que lembrámos há um constante vai-e-vem entre o que o artista vê e sente e a transição de um dia glorioso que a pouco e pouco se desvanece na imersão da noite, no magnífico céu estrelado que nos projeta para uma dimensão desconhecida que a cultura e a arte revelam. E regresso a Manuel Teixeira-Gomes e ao seu “Agosto Azul”, a que não me canso de voltar. Desconfiado das revoluções artísticas, o mestre prefere salientar a vitalidade das metamorfoses que a cada passo encontramos: “Cuido até que um talento pouco literário pode ser mais proveitoso à riqueza da língua do que o mais poderoso e versado humanista. Não faltam exemplos históricos de línguas empobrecidas por excesso de claridade e ressecadas à inclemência dos preceitos infrangíveis”, mas ganhas por uma ampla “gama de meios-tons, onde a cor se conjuga ao sentimento”, os quais, “alargando a vida, sugerem sensações inefáveis”. E eis o maior dos elogios à língua e à literatura, à criação e à cultura como modo ético de melhor nos fazermos compreender. É a palavra viva que importa.
Guilherme d’Oliveira Martins