A VIDA DOS LIVROS
de 29 de Junho a 5 de Julho de 2009
Sophia de Mello Breyner Andresen continua a acompanhar-nos na serenidade dos seus textos e na pureza dos seus ideais. Cinco anos depois da sua ausência, que é presença permanente pela perenidade das suas palavras, é fundamental regressar aos três volumes da “Obra Poética” (Caminho) ou aos contos publicados pela Figueirinhas. Deparamo-nos com o deslumbramento de uma escrita depurada, rigorosa, amorável, ática, a um tempo clássica e moderna, intemporal, sedenta de sentido, duradoura e inusitada, onde a pessoa humana e a natureza se encontram permanentemente, sentindo-se, a cada passo, a busca da palavra certa, como sinal de dignidade, e a recusa de qualquer facilidade. “Sozinha estou entre paredes brancas / Pela janela azul entrou a noite / Com o seu rosto altíssimo de estrelas” – di-lo em “Mar Novo”. E em “A Menina do Mar”: “Sentaram-se os dois em frente do outro e a menina contou: – Eu sou uma menina do mar. Chamo-me Menina do Mar e não tenho outro nome. Não sei onde nasci. Um dia uma gaivota trouxe-me no bico para esta praia. Pôs-me numa rocha na maré vaza e o polvo, o caranguejo e o peixe tomaram conta de mim”.
MIGUEL TORGA…
Quando Miguel Torga leu pela primeira vez um manuscrito de Sophia de Mello Breyner, partiu para o Porto porque queria conhecer e “ver por seus olhos que não se tratava de um feliz acaso, mas dum caso sério de criação na literatura portuguesa” – no testemunho de Francisco Sousa Tavares. No mesmo sentido, Jorge de Sena disse estarmos perante “um poeta de fluente e escultural segurança expressiva, em cujos poemas o amor da vida e uma intensa exigência moral encontram símbolos marinhos e aéreos, usados com força visionária, para exprimir uma tensa vivência do sentido trágico da existência”. Sophia de Mello Breyner viveu a infância no casarão imenso do Campo Alegre. Na Praia da Granja, onde passava os Verões, aprendeu a amar a grandeza e o mistério do oceano. Era “a casa branca em frente ao mar enorme”, com o seu jardim de areia e flores marinhas, do “silêncio intacto em que dorme/o milagre das coisas que eram minhas”. “Na minha infância, antes de saber ler, ouvi recitar e aprendi de cor um antigo poema tradicional português chamado Nau Catrineta”. E o avô ensinou-lhe a amar Camões e Antero: “Camões parecia-me um palácio de vidro, transparente, luminoso, atravessado por uma luz doirada. Em Antero a luz era diferente, uma luz atormentada, cheia de clarões e de sombras”. Sophia veio estudar para Lisboa Filologia Clássica, curso que não concluiu. Proveniente de uma família da velha aristocracia portuguesa, com fortes tradições liberais, tornou-se uma das personalidades mais representativas de uma atitude inconformista e democrática.
MILAGRE RARO
“Uma espécie de milagre, de raro e quase incrível privilégio, devem ter preservado cedo a jovem Sophia, católica e portuguesa, daquela obsessão culpabilizante que encharca por dentro a lírica nacional” – afirma Eduardo Lourenço. E a própria Sophia dirá: “Sempre a poesia foi para mim uma perseguição do real. Um poema foi sempre um círculo traçado à roda duma coisa, um círculo onde o pássaro do real fica preso. (…) Quem procura uma relação justa com a pedra, com a árvore, com o rio, é necessariamente levado, pelo espírito da verdade que o anima a procurar uma relação justa com o homem”. Sophia de Mello Breyner é um caso singular na literatura portuguesa – ponto de encontro entre uma tradição clássica e uma genuína atitude de “uma atenção virada para fora”. “Não tenho explicações / Olho e confronto / E por método é nu meu pensamento”… Vasco Graça Moura afirma: “tendo bebido a lição panteísta de Pascoaes, filia-se nos simbolistas, como Nemésio e Rilke, e apreende o concreto para que o concreto, despojado da sua ganga impura, adquira o peso total da sua existência e funcione como filtro e como via idónea para o encontro de um ‘outro’ real verdadeiro e metafísico”.
A CIDADÃ DE PALAVRA(S)
Ainda estamos a ouvir os ecos da declaração de Sophia de Mello Breyner, na Assembleia Constituinte em 1975, dando sequência à intensa actividade cívica durante a ditadura, designadamente no Centro Nacional de Cultura e na Comissão Nacional de Socorro dos Presos Políticos, a proclamar: “A cultura não existe para enfeitar a vida, mas sim para a transformar – para que o homem possa construir e construir-se em consciência, em verdade e liberdade e em justiça. E, se o homem é capaz de criar a revolução é exactamente porque é capaz de criar a cultura” (2.9.1975). A luta fundamental não deveria ser por uma “liberdade especializada”, mas sim pela liberdade do povo – liberdade de expressão e de cultura. E é impressionante e actualidade e a clareza das suas palavras: “Queremos uma relação limpa e saudável entre a cultura e a política” – insistia. “Não queremos opressão cultural. Também não queremos dirigismo cultural. A política sempre que dirigir a cultura engana-se. Pois o dirigismo é uma forma de anti-cultura e toda a anti-cultura é reaccionária”. Contra todos os dirigismos e totalitarismos, Sophia deixava claro um sentido essencial para a interpretação do novo texto constitucional de 1976 – em que a liberdade é a pedra angular, contra todos os dogmatismos indiscutíveis e os maximalismos irreais. Por isso, atacava frontalmente (como sempre fez) o “poder totalitário”, que persegue o intelectual e manipula a cultura. “Nenhuma forma de cultura se pode atribuir o direito de destruir ou menorizar outras formas de cultura”. Nesse discurso fundador, Sophia de Mello Breyner partiu da cultura, apenas dela, mas deixou claro que esta não pode ser vista isoladamente, tem de conduzir à valorização do acto e da arte de educar: “Ensinar é pôr a cultura em comum e não apenas a cultura já catalogada e arrumada do passado, mas também a cultura em estado de criação e de busca”. E que deve ser a liberdade de aprender e ensinar senão a procura de “novas formas de ensino que possam procurar, ensaiar e inventar”?
A MAGIA DE UMA ESCOLA
E não me posso esquecer esse momento mágico, quando visitei com Sophia a Escola da Outurela que tem o seu nome. Era a procura, o ensaio e a invenção que Sophia queria ver na escola e na educação, como arte de procura e de descoberta, de aprendizagem séria e rigorosa. Por isso, exigiu, e depois ficou muito contente com os resultados, que “A Menina do Mar” fosse decorada e representada pelos jovens alunos daquela escola. E, ao meu lado, segredou-me que poderíamos acreditar na escola que trabalhasse, que fizesse da disciplina uma partilha de responsabilidade e o culto do equilíbrio. Nos idos de 1975, num momento em que havia muita facilidade nas palavras e nas propostas, Sophia ponderou ideia por ideia o que disse naquele momento fundador e falou de “ensino livre onde nenhuma iniciativa seja desperdiçada”. A escola é, assim, vista como lugar de liberdade e de justiça, de participação e de ajuda mútua. Recordo-o, mais uma vez. Daí a importância dos conceitos de cidadania inclusiva, de combate à exclusão e de ensino integrado. E em nome de “Educação e Cultura para todos”, que tem de ir muito além das palavras, Sophia de Mello Breyner foi uma das vozes, com Miller Guerra, também a levantar-se a favor da igualdade para as pessoas com deficiência: “o tratamento e a reabilitação são tarefas que incumbem ao Estado e à família. Mas a integração é uma tarefa em que toda a sociedade deve participar” (4.10.1975). Aí estava o seu extraordinário sentido de justiça e a sensibilidade humaníssima. “A viagem pelo fundo das coisas” a que Sophia de Mello Breyner Andresen aludiu no conto “A Menina do Mar” bem poderia ser utilizada como a imagem de um projecto educativo. E assim não podemos deixar de ouvir o que também nos disse: “espero que na educação portuguesa passe a haver mais música, mais poesia oralmente dita e mais ginástica. Tudo o resto virá por acréscimo” (Noesis, 1993).
Guilherme d’Oliveira Martins