A VIDA DOS LIVROS
De 22 a 28 de Junho de 2009.
“Reflections on the Revolution in Europe” de Ralf Dahrendorf (Random House, 1990) é um livro indispensável para a compreensão dos acontecimentos europeus de 1989. A queda do muro de Berlim suscitou uma onda de optimismo e levou à formulação de algumas previsões – que, depois, não vieram a confirmar-se. Pensou-se que estaríamos perante uma nova “Primavera dos Povos”, mas julgou-se ainda que seria possível evitar aquilo a que conduziu esse movimento libertador de 1848, perante o vazio deixado pelo Império Austro-húngaro, que levaria a Europa para a tragédia do século XX. Longe da ideia de fim da história hegeliano de Francis Fukuiama, que o sociólogo germano-britânico cita expressamente, do que se trataria nesse momento era de ver exactamente que ameaças e oportunidades nasciam.
DUZENTOS ANOS DEPOIS… – Ralf Dahrendorf (1929-2009), que faleceu na semana que passou, escolheu propositadamente para título dessa sua obra emblemática quase o mesmo encontrado por Edmund Burke (1729-1797), havia exactamente duzentos anos, a propósito da Revolução francesa. Afinal, apesar das profundas diferenças, poderia haver o risco de cometer erros de simplificação e de incompreensão dos acontecimentos. Para Burke, a Constituição inglesa era o paradigma do equilíbrio e do respeito pela soberania dos povos, já que a prudência e a ética social ínsitas nas tradições teriam de constituir a base de um qualquer contrato social, em que o liberal inglês acreditava sinceramente. Mas o autor de setecentos foi sempre um inconformista no seu tempo, defensor das mais avançadas causas dos whigs, designadamente da revolução americana. Afinal, Burke não foi um conservador no seu tempo. E Dahrendorf escolheu essa referência pretendendo chamar a atenção para a importância da compreensão da complexidade social e da necessidade de haver instrumentos reguladores dos conflitos capazes de respeitar a “sociedade civil” e os cidadãos. O direito deveria, assim, resultar da própria sociedade. “A diferença entre a carta de Burke ao seu parisiense e esta que vos dirijo (afirma Dahrendorf) tem a ver com a natureza dos acontecimentos e com o temperamento político dos seus autores respectivos. Burke não queria ver a Constituição de Inglaterra destruída pela importação de um dogma utópico. O carácter absoluto, eu diria mesmo total do ele via em Paris inquietava-o. Eu regozijo-me, pelo meu lado, com os sinais de abertura na Europa inteira, que, longe de ameaçar as Constituições britânica, francesa ou alemã, fundadas na liberdade, reafirmam os seus princípios e pedem-nos, a nós, Europeus favorecidos, que ajudemos – a compreender o que se passa e a criar os fundamentos da sociedade aberta”.
UMA BIOGRAFIA PLENA. – Ralf Dahrendorf nasceu em Hamburgo, filho de um político alemão social-democrata, que em 1933 foi preso pelos nazis, passou à resistência, e voltaria a ser preso em 1944. Por sorte, não foi executado no campo em que foi internado, em território polaco, a este do rio Oder. A sua família ficou em Berlim, mas depressa percebeu a insustentabilidade da situação, sobretudo a partir do momento em que o pai se opôs à fusão entre o SPD e o partido socialista unificado na Alemanha de leste. Valeram os seus amigos britânicos e norte-americanos, que permitiram que uma escolta tirasse a família da cidade de Berlim. A vida profissional de Dahrendorf tornar-se-ia, a partir de então, um misto de acção académica e de acção política. Estuda na Alemanha e depois na London School of Economics (LSE), onde afirma o seu prestígio como um dos sociólogos políticos mais argutos da sua geração. Em Londres trabalha com Karl Popper, de quem se torna amigo muito próximo. Leccionará em Hamburgo, Tubinga e Konstanz (1957-69), onde desenvolve trabalhos fundamentais sobre a teoria do conflito social. Em 1959, Willy Brandt convida-o a participar no célebre Congresso de Bad Godesberg, para demonstrar a importância da corrente liberal na renovação do pensamento social-democrata. Mercê de uma profunda reflexão, conclui que está mais do lado liberal (apesar de um forte sentido social, bem sentido na sua obra). Como membro do Partido Liberal alemão (FDP), foi vice-ministro dos Negócios Estrangeiros (1969-70) e comissário europeu para a Investigação, Educação e Ciência (1970-74). Sendo um europeísta convicto, foi sempre um crítico severo das tendências centralizadoras e burocráticas de Bruxelas, ciente de que a cidadania europeia tinha de ser reforçada. Do mesmo modo, considerava ser essencial a existência de uma parceria atlântica, como Jean Monnet defendera com o Presidente J.F. Kennedy. “A União Europeia pode representar um modelo de cooperação entre Estados, a partir da existência do Estado de direito e da economia de mercado: esta é uma definição básica”. De 1974 a 1984 será director da LSE. Em 1984 regressa a Konstanz. De novo vai para Inglaterra, onde é governador da London School (1986) e “warden” do St Anthony College de Oxford (1987-1997). Em 1988, alcança a naturalização como cidadão britânico, sendo elevado em 1993 ao pariato como Barão Dahrendorf de Clare Market em Westminster.
EUROPEÍSTA SEM ILUSÕES. – Para Ralf Dahrendorf, mais importante do que a liberdade formal deveria ser a liberdade real. Daí as suas cautelas na concepção da “ordem liberal”. Que exigiria uma forte responsabilidade social, o que o levou a demarcar-se da “economia da ilusão” que conduziu à crise financeira que atravessamos. “Não pode haver uma ordem liberal sem democracia política, mas esta por si só não garante a ordem liberal”. O mero liberalismo económico formalista nunca o satisfez. Daí que, para alcançar uma “ordem liberal” exigisse três condições: a democracia não deve tolerar os que se propõem destruí-la; o Estado de direito tem de ser consagrado, uma vez que há regimes sem lei e Estados de lei sem democracia; deve haver uma sociedade civil forte, em que o pluralismo seja regulado (mas não controlado) pelo Estado. Dentro dessa lógica o debate europeu foi para Dahrendorf uma oportunidade crítica para pensar a democracia. E depois de 1989 era possível abrir essa reflexão nova. “O importante é controlar e equilibrar os grupos dirigentes e mudá-los de tempos a tempos, por meios pacíficos, através de eleições”. Como Montesquieu disse, só o poder pode controlar o poder… Além disso, como o nosso pensador afirmou, pelo menos desde 1959 (em “Classes e Conflitos de Classes na Sociedade Industrial”): “a repressão combate o seu próprio fim: os governos totalitários estão em ‘perigo’ de ser afastados violentamente, na medida em que recorrem à repressão como meio de regular os conflitos”. Do que se trataria, depois de 1989, tinha a ver com a expressão inventada por Timothy Garton Ash – “refolução” – para os acontecimentos de Varsóvia e Budapeste, “porque eram, por essência, reformas vindas do alto em resposta às pressões em favor de uma revolução vindas de baixo, mas ele não hesita em contrapartida em utilizar a palavra revolução para o que se passou em Praga, Berlim e Bucareste. De toda a evidência, as mudanças operadas pelos acontecimentos de 1989 foram ao mesmo tempo extremamente rápidas e muito radicais (o que corresponde à definição das revoluções)”. No entanto, os grandes desafios tinham a ver com a construção do Estado de Direito e da sociedade civil. Daí citar no “Federalist” Alexander Hamilton para o primeiro ponto e James Madison para o segundo. Nesse sentido, defendeu a complementaridade entre o liberalismo constitucional e a reforma social, que deveriam animar uma “nova aliança”, constituindo uma resposta europeia de conjunto. Mas se Dahrendorf falava das sociedades além muro e da sua fragilidade, também referia que “os anos 1980 foram, para retomar a fórmula de Susan Strange, uma década marcada pelo ‘capitalismo de casino’. O dinheiro foi engendrado pelo dinheiro, mais do que pela criação de uma riqueza durável”. Daí os pequenos sobressaltos de 1987 e 1989, que apenas foram pequenos avisos, por comparação com o terramoto do Outono de 2008… Relendo Ralf Dahrendorf, compreendemos a importância e a pertinência da sua reflexão. Aí está a crítica da cegueira neo-liberal e das simplificações intervencionistas…
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Guilherme d’Oliveira Martins