A VIDA DOS LIVROS
De 11 a 17 de Maio de 2009.
Regressado de Chemnitz, onde participei na Congresso Internacional “Ideas of / for Europe”, invoco Denis de Rougemont, cujas ideias recordei. E falo-vos de um pequeno livro, que dá conta do percurso intelectual deste cidadão europeu, tantas vezes mal compreendido, um visionário que ainda hoje merece ser lido e recordado. “Denis de Rougemont, Introduction à Sa Vie et Son Oeuvre” de François Saint-Ouen (Georg Editeur, Centre Européen de la Culture, 1995) dá-nos o itinerário de um europeísta, que nos permite procurar perceber por que razão o autor de “L’Amour et l’Occident” se tornou uma referência dos ideais pan-europeus, para além dos circunstancialismos imediatos ou das lógicas burocráticas…
UNIDADE OU DESAPARECIMENTO.
Afirmei na reflexão que fiz sobre Cultura Europeia o que já aqui disse antes, ou seja, que, «para Rougemont, a alternativa que se punha e põe à Europa era e é entre a unidade ou o desaparecimento. “Dividida em nações rivais, não podendo nenhuma delas assegurar a sua defesa, a Europa será colonizada” (cf. “L’Europe en Jeu”, 1948). Só a existência de elos federadores muito fortes permitem impedir a guerra e lançar as bases da paz e do desenvolvimento. “Unir a Europa nas suas diferenças, esse é o grande objectivo comum que se oferece a esta geração”, para construirmos uma realidade europeia humanista, capaz de contrariar uma mentalidade ainda hoje demasiado dominada pelos medos, pelas resistências, pelos receios e pelos egoísmos nacionais. E Rougemont insistia: “É porque a Europa é a memória do Mundo que não deixará de inventar. Continuará a ser o ponto de virulência extremo da criação espiritual, este canto do mundo onde o homem soube tirar de si mesmo as utopias mais transformadoras e mais ricas de futuro, em benefício de todos os outros homens do planeta”. Como Karl Jaspers afirmou: a Europa não tem escolha senão entre a balcanização e a helvetização, ou seja, entre a fragmentação e a incerteza, de um lado; a integração federal das nações e a partilha de soberanias, de outro. Mas, para durar, a Europa não deve contar apenas com os governos. “A união, a paz, que a maior parte dentre elas desejam, não pode ser questão sua, por razões absurdas, mas técnicas”. É preciso empenhamento de todos. A palavra deve caber aos povos. E falamos de um sistema de “liberdades organizadas”, solução de equilíbrio entre o individualismo e a solidariedade. A Europa tem de ser diálogo e debate perpétuos, daí que deva basear-se a união na diversidade. “A criação, a transmissão e a elaboração da cultura nunca foram na Europa apanágio de uma doutrina única, duma nação ou de uma casta escolhida. Resultam, pelo contrário, de um diálogo permanente (muitas vezes dramático, outras trágico) entre um grande número de realidades e de tendências antagónicas que todas contribuíram para fazer a Europa e para modelar a ideia europeia de homem”. Com sentido profético e visionário, Rougemont disse-nos, por isso, que “a conquista suprema da Europa chama-se dignidade humana e a sua verdadeira força está na liberdade”…».
ITINERÁRIO DE UM EUROPEU.
Homem preocupado com o futuro, Denis de Rougemont (1906 -1985) era um suíço que partiu da sua própria experiência para a consideração de um projecto europeu universalista, centrado na dignidade da pessoa humana. E esta consideração nunca foi meramente teórica ou abstracta, mas sim muito prática orientada para a criação e para uma ideia construtiva de Europa, como continente aberto, livre, capaz de irradiar um entusiasmo de paz, de desenvolvimento e de cultura. Filho de um pastor de Neuchâtel, foi cedo influenciado por Karl Barth, o que colocou a exigência ética no centro da sua vivência. Estudante de Letras da Universidade do seu cantão, foi discípulo de Jean Piaget, tendo obtido a licenciatura com uma memória dedicada a Bergson. Cedo começa a viajar no centro da Europa, onde descobre a necessidade de encontrar elos unificadores e valores comuns capazes de contrariar a tentação da guerra e da fragmentação. Em 1930, em Paris, assume a direcção literária das edições “Je Sers”. Com Alexandre Marc e Arnaud Dandieu, torna-se um militante personalista e europeu. Em 1932, ano da publicação de “Le Paysan du Danube”, participa com Mounier na fundação da revista “Esprit”, mas colabora ainda em “L’Ordre Nouveau”, “Plans” e “Hic et Nunc” (esta de forte marca barthiana). As colectâneas “Politique da la Personne” (1934) e “Penser avec les mains” (1936) reúnem os textos deste tempo. As categorias liberdade individual, responsabilidade perante o outro e compromisso (no sentido de empenhamento, que Paul-Louis Landesberg desenvolverá com Emmanuel Mounier) tornam-se cruciais para o pensamento de Rougemont e para a sua política da pessoa. Em 1939, quando publica “L’Amour et l’Occident”, assina uma das obras referenciais da cultura europeia do nosso tempo. Aí defende que o elo social fundamental, no Ocidente, repousa numa concepção de Amor do próximo herdada de S. Paulo. “Que melhor do que a união durável entre o homem e a mulher, simboliza a unidade na diversidade?”. Mas Rougemont mostra que a cultura europeia inventou uma outra forma de amor: o amor-paixão, que aspira a uma fusão impossível destruidora dos seres reais. É essa paixão delirante e mortífera que conduz à paixão nacionalista e ao culto da centralização. Nesse tempo, a experiência que tem na Universidade de Frankfurt nos anos de 1935 e 1936, permite-lhe compreender o fenómeno do nazismo, a partir das concepções trans-personalistas do Estado-nação centralizado e omnipresente, que o jacobinismo do “terror” também cultivou. O seu inconformismo militante torna-o incómodo para o neutralismo suíço, o que o leva, até 1947, para os Estados Unidos, onde encontra e colabora activamente com Aléxis Léger, Max Ernst, Edgard Varèse, Saint-Exupéry, Marcel Duchamp e André Breton. No final dos anos quarenta, torna-se um dos principais animadores dos Congressos Europeus, de que o mais celebrado foi o Congresso da Haia de Maio de 1948. Na sequência destas iniciativas, animará e dirigirá o Centro Europeu da Cultura de Genebra, e inspirará a criação do Colégio da Europa de Bruges. Em 1954, será um dos criadores da Fundação Europeia da Cultura (que depois será transferida de Genebra para Amesterdão), assim como suscitará, logo no início da década, a criação do CERN, Conselho Europeu para a Investigação Nuclear, que ganharia uma importância fundamental no meio científico do continente. Denis de Rougemont presidiu, ainda, de 1952 a 1966, ao Congresso para a Liberdade da Cultura (que teve um papel muito importante em Portugal, tendo estado sedeado no CNC).
UMA LÓGICA UNIVERSALISTA.
Em vez de uma lógica eurocêntrica, Rougemont vai-se ainda interessar pelas civilizações orientais (e estuda, por exemplo, a cultura indiana), lançando as bases do que a UNESCO designará como “diálogo entre culturas”. É também o tempo das Conferências Europa-Mundo, que constituirão uma marca do novo espírito europeu, aberto e universalista. Em 1961, publica “Vinte e Oito Séculos de Europa”, onde historia a ideia de Europa, desde a Antiguidade. Com esta iniciativa, Rougemont pensa e concretiza uma campanha de educação cívica europeia, para que os professores pudessem contribuir activamente para a criação de uma nova mentalidade, ligada à construção de uma Europa política, incentivadora da liberdade de espírito. E toma consciência da importância das regiões e da criação de solidariedades de facto. Defende a criação de um Senado de Regiões e milita em prol do ambiente e da ecologia. “Para Rougemont, as finalidades encontram-se nos valores postos em tensão pela cultura. A Pessoa foi sempre para ele o horizonte propriamente revolucionário no qual se inscrevia o seu projecto federalista duma Europa das regiões”…
Guilherme d’Oliveira Martins