A VIDA DOS LIVROS
De 9 a 15 de Março de 2009.
“Obra Completa – 1969-1985” de Nuno Bragança (Dom Quixote, 2009) é um acontecimento literário, uma vez que se faz regressar ao grande público, com esta publicação, um escritor e uma obra maiores que marcaram e marcam, no sentido de uma profunda renovação, a literatura portuguesa. E a verdade é que ainda está por fazer-se o reconhecimento da importância e do valor de Nuno Bragança no nosso panorama cultural, tantas vezes fechado sobre si mesmo e avesso às transformações que vão para além da superfície. O século XX português teve o abanão do “Orpheu”, no entanto os conformismos constituíram-se em regra e esse episódio foi excepcional. Foi contra um estado de coisas acomodatício que Nuno Bragança se afirmou, e é de elementar justiça referir o seu extraordinário talento renovador.
UMA OBRA (QUASE) INESPERADA. – Nuno Bragança (1929-1985) teria oitenta anos se vivesse. Nasceu em Lisboa de um família da aristocracia, descendendo do rei D. Pedro II e dos Duques de Lafões. “Criado embora entre hálitos de faisão, cedo me especializei na arte de estender os braços. Dia após dia os mais laboriosos, cansativos forcejos projectavam meus membros anteriores em-frentemente. E isto assim até que perdi as mãos de vista” – deste modo começa “A Noite e o Riso”, denotando as origens e um sentido irónico em que o jogo das palavras procura pôr em xeque a acomodação e a inércia. Primeiro frequentou Agronomia, tendo depois seguido para Direito, na Universidade de Lisboa, cujo curso completou em 1957. Após uma infância e uma adolescência muito protegidas de todos os “perigos do mundo”, Nuno Bragança sentiu necessidade de quebrar amarras. Desportista, desde o boxe à caça submarina, publicou os seus primeiros textos literários no jornal da Juventude Universitária Católica (JUC) “Encontro”. Na segunda metade dos anos cinquenta, escreve textos satíricos como “A Morte da Perdiz” e “Guardador de Porcos ou Guliveira e os Liliputos”, este em colaboração com M.S. Lourenço, Luís de Sousa Costa e Manuel de Lucena. São desse tempo e do início dos anos sessenta a actividade cineclubística e os textos sobre cinema no âmbito do CCC (Centro Cultural de Cinema). É funcionário público, ligado aos assuntos do trabalho e do emprego, e participa com António Alçada Baptista, João Bénard da Costa e Pedro Tamen no projecto da Livraria Morais (1958) e depois da revista “O Tempo e o Modo”, onde colaborou entre 1963 e 1969, assinando como Nuno Bragança e Manuel Caupers. É desse tempo a escrita do argumento e diálogos do filme “Verdes Anos” de Paulo Rocha (1963). Sedento de acção que permita abrir horizontes numa sociedade fechada e claustrofóbica, nos anos sessenta, torna-se militante do MAR (Movimento de Acção Revolucionária) e milita activamente na oposição ao regime. Em “Directa” irá dar-nos o retrato dessa vocação. Aí se encontram os desígnios e as contradições, as dúvidas e as hesitações, e a vontade de fazer qualquer coisa, para que se pudesse criar “uma sociedade em que as nações descubram os seus rostos verdadeiros, que a máquina estatal desfigurou”. Afinal, tinha consciência de que “há situações em que a vitória vem a resultar de derrotas aparentes”. No final de sessenta, fixa-se em Paris, onde trabalha na representação portuguesa junto da OCDE, até 1972. Em 1969, morre a sua mulher Maria Leonor.
AO PUBLICAR “A NOITE E O RISO” abre um capítulo novo na produção literária. Desde o surrealismo às novas tendências do romance, de tudo se encontra no primeiro romance de Nuno Bragança. Aí diz: “no espanto desenhado das palavras azuis, há ocasiões em que paro, a meio de escrever, e me apavoro. Eu: que escrevi, porque escrevi”. E ainda: “o Tempo: é como chuva. E em qualquer sítio uma qualquer porta atrás de que pode estar alguém”. Graças a um talento muito especial para o non-sense e para trilhar novos caminhos, sob influências tão diversas como o romance americano e o “nouveau roman”, Nuno Bragança afirma-se, no fundo, como um escritor de uma nova modernidade, de uma nova linguagem e de uma nova atitude. Nesse sentido, a sua produção é quase inesperada. Aproxima-se das Brigadas Revolucionárias (na ideia de que haveria que fazer algo, com coerência e eficácia); em 1970 co-assina com Fernando Lopes e Augusto Cabrita o documentário “Nacionalidade Portuguesa” sobre a emigração. Regressado a Portugal, colabora com “A Comuna”. Depois da revolução de 1974 é assessor de Mário Murteira no Ministério do Trabalho. Em Julho de 1975, no auge do Verão Quente, sente necessidade de publicar nas páginas de “O Jornal”, um alerta significativo: “O povo português, uma vez mais na sua história, sente-se de esperanças: que a ele seja facultado o parto, e muitos aparentes impossíveis se tornarão realidade com repercussões à escala do planeta. Senhores da política: não nos obriguem novamente a matar-nos uns aos outros, não nos vendam outra vez”. Como diria mais tarde Manuel Alegre, era o sangue dos tempos de Nuno Madruga que vinha à tona, pelo reviver da memória avoenga de Nuno Bragança, de Nun’Álvares Pereira na revolução de 1383, tantas vezes invocada por ele. Depois de 1975, o escritor faz parte do GIS (Grupo de Intervenção Socialista), colabora com a UEDS e apoia a candidatura de Maria de Lourdes Pintasilgo à Presidência da República.
UM PAÍS EM TRANSIÇÃO CHEIO DE PERPLEXIDADES. – A “Obra Completa” reúne os cinco livros de Nuno Bragança: “A Noite e o Riso” (1969); “Directa” (1977); “Square Tolstoi” (1981); “Estação” (1984); “Do Fim do Mundo” (obra póstuma de datação difícil, mas publicada em 1990) e ainda “A Morte da Perdiz” (uma peça radiofónica, de 1956). Se o título da obra indica como balizas os anos de 1969 e 1985, que correspondem à delimitação da vida literária de Nuno Bragança, há dois textos (os últimos indicados) que estão fora desses limites. “A Morte da Perdiz” é um entretenimento, aliás cheio de graça, que envolveu Maria Leonor, a mulher do escritor, Pedro Tamen e Nuno Cardoso Peres, e que prenuncia algumas das características de non-sense que definem a originalidade de Nuno Bragança. Quanto ao texto “Do Fim do Mundo”, é certamente anterior ao primeiro romance publicado. Os acontecimentos situam-se no final dos anos cinquenta, devendo ter sido feito no início dos anos sessenta, não sendo de excluir a possibilidade de ter sido revisto depois. O relato tem, no entanto, bastante interesse, sendo evidente a preocupação do autor em dar-nos a tensão entre a complexidade psicológica das personagens e o meio que as rodeia: “Túlio corria assim o risco de saltar de um trapézio para outro sem saber se agarraria o segundo trapézio, e sem rede. Fazia as coisas deste modo por pura fidelidade ao que sempre fora o estilo dele”. Nuno Bragança escreve sempre a pensar no seu tempo e num tempo novo que se pode preparar, daí a sua perplexidade permanente, e a necessidade de procurar entender o mistério dos acontecimentos e da sociedade. “Porque sei que tempo é sempre tempo / E lugar é sempre e apenas lugar…” – disse T.S. Elliot (na tradução de M.S. Lourenço, colocada na abertura de “Directa”). Eis porque a escrita do autor de “Square Tolstoi” não é apenas inovação formal, mas comporta, sim, a tentativa de compreender o tempo presente, respondendo com os desígnios de sempre… Como afirma na fundamental nota que antecede o romance “Directa”, a propósito da publicação em 1977 de um texto escrito num momento em que não poderia ser publicado senão clandestinamente: “sei que isso representa uma estação, que em meu viver ultrapassa a mera escrita”.
PORTUGAL EM CAUSA. – Oiçamos, afinal, o escritor sobre o que o preocupa: “Portugal pós-25 de Abril continua saldando dívidas contraídas num contexto de cuja ambiguidade autores como os atrás citados (Camões, Pessoa…) dão aviso. A industrialização sobrevinda após a generalização e o domínio do mercado, bem como a vassalagem ante o dinheiro e o crescimento desenfreado duma produção económica mais sequiosa do Poder que orientada para o alívio generalizado da miséria, conduziram a humanidade a uma situação de encruzilhada como jamais o mundo conheceu. E se, no Portugal que de Aljubarrota saltou para Ceuta, há hoje dores de cerco e privação, talvez isso não seja mais do que um sinal de que a nação portuguesa nunca permaneceu alheia aos dilemas que o Renascimento inaugurou”.
E oiça aqui as minhas sugestões na Renascença.
Guilherme d’Oliveira Martins