A VIDA DOS LIVROS
De 2 a 8 de Fevereiro de 2009
A leitura de “A Gravidade e a Graça” de Simone Weil (1909-1943) é o mergulho intenso numa reflexão que permite assinalar com conhecimento de causa o centenário do nascimento de uma das personalidades mais ricas do século XX. E só esta invocação poderá ser fiel à existência de uma mulher que se colocou no epicentro das grandes angústias e incertezas de um século em que muitas esperanças se tornaram tragédias e em que muitos dramas puderam abrir novos horizontes de humanidade (Tradução de Dóris Graça Dias, Relógio de Água, 2004). George Steiner disse, aliás, que “entre os grandes espíritos femininos de todo o mundo, o de Weil impressiona-nos por ser aquele que é mais evidentemente filosófico, aquele que está familiarizado com a ‘luz da montanha’ (como diria Nietzsche) da abstracção especulativa”.
UMA VIDA EXTRAORDINÁRIA.
Nos apenas trinta e quatro anos de vida de Simone Weil, encontramos uma vocação intelectual e espiritual que, permanentemente, se liga a um impulso cívico e pessoal no sentido da justiça e do amor. João Bénard da Costa, quando recordou a influência de Simone Weil, em Inglaterra e França, graças ao “poderoso” contributo de Graham Greene, e entre nós nos começos da Moraes, do Círculo do Humanismo Cristão, na tentativa de tradução de M.S. Lourenço e nos prenúncios de “O Tempo e o Modo”, disse dela o que a caracteriza sobremaneira: “Heterodoxa politicamente, heterodoxa teologicamente, heterodoxa filosoficamente, creio que foi a confluência entre ‘a truer liberty’ e a ‘silent question’, a que se referiu Buber, que suscitaram a paixão de alguns em Portugal, nos idos de 50 ou desde os idos de 50 até hoje” (Público, 4.7.04). O seu percurso é fascinante e deixa-nos quase perplexos: aluna de Alain no liceu Henrique IV, estudante da École Normale Superieure da rue d’Ulm, agregada em Filosofia, professora de liceu (Le Puy, Auxerre, Roanne, Bourges, Saint-Quentin), cientista que se deixa entusiasmar pela física e pela matemática, operária fabril (para sentir as agruras da condição servil), militante anarquista na guerra de Espanha. O seu pacifismo depressa se chocou, no entanto, com o ambiente da guerra civil. Veio então para Portugal onde sentiu a miséria e o cristianismo dos pobres. “Desde a minha vida como operária, recebi para sempre a marca da escravidão, como marca de ferro em brasa que os romanos impunham aos escravos mais desprezados”. Por ser judia, tinha sido expulsa do ensino e obrigada a abandonar a pátria, indo para os Estados Unidos com os pais e depois para Inglaterra, onde trabalhou pela “França Livre”. Desejou então juntar-se como pára-quedista à Resistência no interior. No Reino Unido elaborou freneticamente relatórios sobre temas políticos, sociais e educativos, mas a morte encontrou-a, tuberculosa, no sanatório da Ashford. “A loucura do amor, quando se apossa dum ser humano, transforma completamente as modalidades da acção e do pensamento. Parece-se com a loucura de Deus” – dirá nesses anos finais, como que desejando justificar-se.
UMA PROCURA DA VIDA VIVIDA.
Simone Weil reflecte permanentemente, não sobre o sentido abstracto, mas sobre a vida das pessoas concretas, com as suas dúvidas e hesitações, com as carências e a miséria. Num diálogo conhecido com Simone de Beauvoir na adolescência, Weil terá dito que estava muito mais preocupada com as circunstâncias concretas da condição humana, do que com a busca de um sentido para a existência, por muito que isso fosse importante, no entanto, o fundamental seria compreender as dificuldades concretas, a provação e a pobreza de quem sofre. “A criação é o resultado do movimento descendente da gravidade, do movimento ascendente da graça e do movimento descendente da graça em segunda potência. A graça é a lei do movimento descendente. Descer é subir relativamente à gravidade moral. A gravidade moral faz-nos cair para o alto”. Eis o tema recorrente da obra. A graça e a gravidade relacionam-se intimamente e abrem caminho à revelação dos mistérios. “Deus só pode criar escondendo-se. Se assim não fosse só ele existiria. Do mesmo modo, também a santidade deve ser escondida, mesmo da consciência, até certo ponto. E deve sê-lo do mundo. (…) O ser do homem está situado atrás da cortina, do lado do sobrenatural. Aquilo que pode conhecer de si mesmo é apenas aquilo que lhe é dado pelas circunstâncias. Eu está escondido por mim (e por outrem); está do lado de Deus, está em Deus, é Deus. Ser orgulhoso, é esquecer que se é Deus… a cortina, é a desgraça humana: até para Cristo havia uma cortina”. Se o ser está atrás da cortina, temos de avançar para os outros, para quem nos questiona e para quem precisa de nós. “Não é preciso ajudar o próximo para Cristo, mas por Cristo”. Afinal, Cristo não sofreu pelo Pai, mas pelos homens por vontade do Pai. E assim vamos ao encontro do próximo não por Deus, mas impelidos por Deus, “como a flecha pelo archeiro em direcção do alvo”.
ENTENDER O SOBRENATURAL
“Os erros da nossa época são os do cristianismo sem sobrenatural”. E Simone Weil debate-se com a tensão permanente entre o natural e o sobrenatural, e procura ver os diversos da vida espiritual e põe o dedo na ferida: “A religião, enquanto fonte de consolo constitui um obstáculo à verdadeira fé: nesse sentido, o ateísmo constitui uma purificação. Devo ser ateia com a parte de mim mesma que não é feita para Deus. Entre os homens cuja parte sobrenatural não está desperta, os ateus têm razão e os crentes não”. Afinal, como poderemos amar sem compreender a realidade tal com é? De facto, amar não significa amar indiferentemente – “porque eu não amo da mesma maneira todos os meus modos de existência”. Amar significa compreender, aceitar, cuidar, dar atenção, por isso devo “estabelecer com cada um a conexão de uma maneira de pensar o universo com uma outra maneira de pensar o universo, e não como uma parte do universo”. Sem relação não há amor. E amar em Deus é, assim, muito mais difícil do que possa parecer à primeira vista. E Simone Weil diz: “Só aquele que ama Deus com um amor sobrenatural pode reconhecer os meios apenas como meios”. E capacidade de distinguir para unir revela-se fundamental. “Este mundo, propriedade da necessidade, não nos oferece absolutamente nada a não ser meios. A nossa vontade é, sem cessar, reenviada de um meio para outro como uma bola de bilhar”. E como compreendê-lo com todas as suas consequências? De facto, o desejo cega. Daí importar a aceitação dos bens terrestres, separando o próprio e o alheio, “por exemplo para respeitar as pátrias estrangeiras, é preciso fazer da sua própria pátria, não um ídolo, mas um patamar para Deus”. Longe das simplificações ou das ilusões, do que se trata é de perceber a fronteira da idolatria, na qual sempre nos encontramos, ora por excesso ora por defeito, quer por julgarmos possuir a verdade quer por nos considerarmos excluídos dela. E isto mesmo que haja “uma espécie de encarnação de Deus no mundo, de que a beleza é testemunho. O belo é a prova experimental de que a encarnação é possível”.
ESPIRITUALIDADE DO TRABALHO
O tema do trabalho e da condição operária foi, além do mais, uma preocupação maior para Simone Weil. No fundo, tratava-se de participar da condição criadora de Deus. “O segredo da condição humana reside no facto de não existir equilíbrio entre o homem e as forças da natureza envolventes, as quais o ultrapassam infinitamente no que respeita à inacção; apenas existe equilíbrio na Acção através da qual o homem recria a sua própria vida pelo trabalho”. Mas, pelo contrário, o escravo é aquele a quem não é proposto qualquer bem, a não ser a simples existência, meramente vegetativa. Daí que Simone Weil sempre tenha buscado o convívio dos mais pobres, dos marginais e dos oprimidos, do mesmo modo que se propôs viver nas situações limite. E longe das opções seguras e definitivas, manteve-se sempre consciente da distância – para que a busca da verdade pudesse estar sempre na primeira linha…
E oiça aqui as minhas crónicas na Renascença.
Guilherme d’Oliveira Martins