A VIDA DOS LIVROS
De 26 de Janeiro a 1 de Fevereiro de 2009.
Gabriel Zaid escreveu a obra “Livros de mais – Ler e publicar na era da abundância” (Prefácio e tradução de Miguel Graça Moura, Temas e Debates, 2008) para nos falar da importância dos livros, num momento em que se verifica um estranho paradoxo, que obriga a séria reflexão, uma vez que o “negócio frenético da edição faz nascer um livro de trinta em trinta segundos”, exactamente quando há quem ponha dúvidas sobre o futuro do livro, no confronto com as novas tecnologias, em especial a Internet, e com o primado quase absoluto da imagem sobre a escrita. Há, assim, um ponto de partida inquietante que é motivo do ensaio agora traduzido em português: “A leitura de livros cresce aritmeticamente; a escrita de livros cresce exponencialmente. Se a nossa paixão pela escrita não for controlada, num futuro próximo haverá mais gente a escrever livros do que a lê-los”. Como?
Livraria Selexyx, Maastricht.
A GRAFOMANIA UNIVERSAL – Quem escreve? Quem contribui para esta situação? De um lado, os que não escrevem para o público, mas sim para o seu currículo. De outro, os que escrevem para o mercado e que conseguem sucesso. Constituem excepções os velhos clássicos dignos de ser relidos e os contemporâneos cientes de que essa tradição deve ser seguida. Mas o tema não é novo. Para Séneca “A multidão de livros dissipa o espírito”. Segundo Ibn Khaldun, no século XIV: “Demasiados livros sobre o mesmo assunto tornam mais difícil estudá-lo”. Montaigne afirmava: “O nosso dever é compor o nosso carácter e não compor livros”. E não nos lembramos do drama de Alonso Quijano, D. Quixote, a queimar a sua biblioteca e a salvar apenas o “Amadis de Gaula”? O livro veio depois dos relatos orais e da conversação. O livro impresso com os tipos móveis inventados por Gutenberg veio depois do livro meticulosamente reproduzido por artífices copistas. O cinema e a televisão puseram em xeque o livro impresso. O romance e o filme “Farenheit 451” centravam-se distopicamente na defesa de que a cultura e os livros apenas se salvariam pela memória e pelo regresso à oralidade. A Internet parece pretender substituir o livro pelos novos suportes magnéticos. No entanto, apesar de tudo isto o livro foi resistindo. A profecia de Herbert Marshall McLuhan sobre o fim da era dos livros parece não realizar-se. E as estatísticas apresentadas são, de facto, impressionantes. “Desde o advento da televisão, a população cresceu a uma taxa de 1,8% ao ano (em vez de 0,3% no meio milénio anterior) e a publicação de livros a 2,8% ao ano (em vez de 1,6% por cento no período precedente”. Se uma pessoa ler um livro por dia, estará a deixar de ler outros quatro mil publicados nesse mesmo dia… Mesmo assim, temos de ter presente duas coisas, por um lado, hoje conseguem-se produzir livros com custos bastante módicos (até pelo número reduzido de exemplares), por outro lado, por cada livro publicado ficam nove por publicar, o que dá bem ideia deste grande crescimento (a que também corresponde um incremento significativo das obras apenas publicadas electronicamente).
REPOSITÓRIOS DA MEMÓRIA. – Sócrates, em Atenas, preferia a conversação à palavra escrita. No entanto, não o conheceríamos sem os livros. “Cultura é conversação. Mas escrever, ler, editar, imprimir, distribuir, catalogar, criticar, podem ser lenha para o fogo dessa conversação, formas de animá-la”, diz-nos Gabriel Zaid. E, nessa linha de pensamento, o autor invectiva o mestre da maiêutica: “Caro Sócrates: Bem dizia Fedro que tens um dom especial para inventar contos egípcios sobre a origem da escrita. Mas, ao fazer-nos duvidar dos progressos que a escrita trouxe, a tua crítica ajuda-nos a situar a verdadeira função dos livros, que é continuarem a nossa conversação por outros meios”. E falando de conversação e de diálogo, somos levados ao “doce comércio” que referia Montesquieu, à liberdade de circulação de bens e pessoas que exige o culto e o respeito da liberdade. O comércio livre seguiu-se historicamente à difusão do livro, factor de autonomia, de inovação, de pesquisa e de diálogo. Comerciar é tratar (daí as palavras “trade” e trato), que o mesmo é dizer conversar e tentar compreender. Qual o símbolo por excelência do enciclopedismo setecentista? Exactamente o Livro. Do mesmo modo, o salto qualitativo que está ligado, em termos civilizacionais, às religiões abraâmicas tem a ver com o Livro. E hoje sabemos que a capacidade de aprender mais e melhor, é o factor fundamental de desenvolvimento e de distinção relativamente ao atraso. Ora, a aprendizagem só se torna viável pela conversação fundamentada nas obras escritas e impressas, que permitem favorecer um diálogo universalizante. Mesmo assim, o que hoje se verifica é que publicar parece ser mais fácil do que ler. Ler pode parecer perda de tempo. Ler afigura-se muitas vezes uma tarefa tão difícil, que parece uma actividade votada a um certo fracasso. Quem se torna leitor sistemático e profissional arrisca-se a tornar-se tradutor de obras estrangeiras ou professor de semiótica. Por outro lado, quem deseja tornar-se um romancista de sucesso ou um autor de “best-sellers” tende a avançar com menos leitura do que desejável, por medo de estar a perder tempo.
INTERROGAÇÕES SOBRE A DIFUSÃO DOS LIVROS – Se há três lugares comuns sobre a projecção social do livro (é o mais nobre dos meios de comunicação de massas; a cultura expande-se pelo livro; e os livros não se difundem mais porque são caros), há um conjunto de interrogações que exigem resposta, até para que se perceba a real valia dos tais lugares comuns… Será o livro um meio de comunicação de massas? A resposta é negativa. Não é preciso que um livro para ser influente tenha milhões de leitores, basta que chegue ao seu público natural, mas pode acontecer até que o livro influente seja um best-seller (sem ser condição necessária). O livro é um meio de acção? Neste ponto, Zadi tem uma resposta que, sendo inconclusiva, é bastante significativa: “crer ou não crer no livro como meio de acção é, antes de mais, isso mesmo: uma questão de crença”. Há muitas situações diferentes e a acção tem o seu valor próprio, associado ou não a um livro. Outra pergunta é: que massas não lêem? As barreiras à difusão dos livros não estão no preço (ao contrário do que se pensa), mas sim nos interesses do autor e do leitor. Para que um livro se difunda é preciso que seja capaz de atrair os seus leitores naturais, e há um campo muito vasto de pistas (e técnicas) a seguir neste ponto. E Zaid diz-nos algo incómodo: “Ler é difícil, retira tempo à carreira e só permite ganhar pontos na bibliografia citável. Publicar serve para obter mérito: é um fim em si mesmo. Ler não serve para nada: é um vício, um puro prazer, uma felicidade”. Não é possível, de facto, encontrar explicações infalíveis para os vários problemas e paradoxos que os livros colocam.
SUPERAÇÃO TECNOLÓGICA? – As novas tecnologias parecem invadir o espaço naturalmente reservado aos livros. E fala-se das inequívocas vantagens (o espaço, a acessibilidade, a urgência…). O autor de “Livros de mais” faz um elenco de vantagens que pertencem aos livros, e rapidamente percebemos que a ideia de superação tecnológica está longe de ser real. Como em todas as revoluções há sempre espaço, maior ou menor, para o paradigma anterior. Ora vejamos: os livros podem ser folheados e isso é uma qualidade que permite apreendermos facilmente o seu conteúdo, percorrendo-o; um livro lê-se ao ritmo escolhido pelo leitor (ora através de uma leitura rápida, ora através de uma meditação lenta); os livros são portáteis e directamente legíveis (não necessitam de intermediários mecânicos, magnéticos, ópticos ou electrónicos), no entanto para as obras de referência (dicionários e enciclopédias) um computador oferece melhores vantagens; os livros não requerem encontro previamente agendado (“o livro permite zapping para a frente e para trás”); os livros são baratos, sobretudo se comparados com o cinema, a televisão e a imprensa, que obrigam a pesados orçamentos e apoios; os livros permitem maior variedade, até por força da forte pressão dos custos nos meios concorrentes e o custo de leitura ainda poderia ser reduzido consideravelmente, se os autores e editores respeitassem mais os tempos do leitor. Zaid escreveu uma bela obra com mil segredos e revelações sobre os livros, que pode ser útil para todos, leitores e livreiros, distraídos e atentos…
E oiça aqui as minhas crónicas na Renascença.
Guilherme d’Oliveira Martins
Na sequência da referência em “A Vida dos Livros” à obra de Benoit Peeters “Hergé Filho de Tintim” recebi mensagem do Dr. João Paulo Paiva Boléo, a que respondo gostosamente:
Meu Prezado Amigo
Fico-lhe gratíssimo pela mensagem que me enviou (…). Permita-me que publique em “A Vida dos Livros” da próxima semana esta missiva, onde darei conta dos seus justíssimos reparos. Ora vejamos, diz-me que “o livro de Peeters é interessante, e até se lerá mais fluentemente, mas a biografia do centenário é a de Philippe Goddin, Hergé -Lignes de vie (Moulinsart, 2007), essa sim fundamental do ponto de vista documental, e que consegue equilibrar razoavelmente ser de algum modo oficial e procurar ao mesmo tempo ser independente. A de Peeters – é uma opinião pessoal – é interessante sobre a obra mas nem sempre gere bem a admiração/distância e inclui factos não (com)provados”. Estou de acordo, de facto a biografia do Peeters saiu aqui com essa referência da editora, que não é correcta. Erro meu. Também concordo com o seu elogio a Peeters, que tem luz própria no mundo e na história da BD (basta lembrarmo-nos da feliz associação com Schuiten). Nada a acrescentar. Segundo ponto. Diz-me ainda que “a propósito da Castafiore, noutro ponto importante, (…), a intervenção de Jacobs na versão a cores do Ceptro de Ottokar foi importantíssima, só que essa aventura ainda foi das que saíram primeiro no Petit XXème a preto-e-branco, em 1938/39, história onde surge, como sabemos, a Bianca Castafiore, precisamente no virar de um ano para o outro. Ora Hergé e Jacobs só se conheceram – segundo todas as fontes – em 1941, e só começaram a trabalhar juntos em 1944, pelo que a criação da soprano não teve naturalmente nada a ver com qualquer influência de Jacobs (que aliás seria perversa – Jacobs adorava ópera e Hergé detestava…)”. Tem toda a razão, o lapso também é meu. De facto Edgar P. Jacobs aparece nesta história (a de Georges Remi) só em 1941. Conheço bem a versão a preto e branco de “O Ceptro”. É, aliás, uma das provas da aversão anti-totalitária de Hergé (Musstler…). Na versão a cores, o próprio Jacobs, entre outros (Hergé, Germaine etc.), é retratado na festa do palácio do rei da Sildávia… Por fim, diz-me ainda: “Estes são os pontos principais, mas permito-me chamar ainda a atenção para outro de carácter geral. A expressão histórias aos quadradinhos não existe «desde as origens», mas ao que tudo indica apenas desde os anos 1940”. Também tem razão. Aí trata-se de verdura minha, uma vez que sendo dos anos cinquenta, tenho a memória dos “quadradinhos” como expressão consagrada… Ninguém falava de BD. Só quando me tornei assinante da revista “Tintin” belga passei a usar essa expressão francófona. O seu a seu dono, e quem sabe sabe… Agradeço-lhe muito os seus comentários e reparos, Dr. João Paulo Paiva Boléo e devo-me declarar seu fiel leitor e modesto aluno nestes temas. De facto, estas afinidades electivas são um prazer, e o importante é o diálogo que proporcionam.
Um forte abraço muito grato do
Guilherme d’Oliveira Martins