A VIDA DOS LIVROS
de 22 a 28 de Dezembro de 2008
“Consciência Histórica e Nacionalismo – Portugal, séculos XIX e XX” de Sérgio Campos Matos (Livros Horizonte, 2008) é uma colectânea de ensaios sobre Portugal nos dois últimos séculos, que permite conhecer como se formou a ideia de identidade nacional, a partir de abordagens diferentes que desaguam nas ideias contemporâneas que temos sobre o País em que vivemos. E o certo é que no século XX o nosso imaginário foi influenciado pelo exacerbamento de concepções geradas um século antes, numa síntese, nem sempre fácil de entender, entre as concepções tradicionalistas e o pensamento liberal. Daí que o republicanismo intelectual, por exemplo, tenha bebido de diferentes fontes, que vão do positivismo inicial às diferentes pistas abertas pela “Renascença Portuguesa”, desde Pascoaes a Pessoa, passando por Cortesão, Sérgio e Proença, mas também por Leonardo Coimbra.
CONSTRUÇÃO DA CONSCIÊNCIA HISTÓRICA
A primeira questão colocada pelo autor é a de saber como se construiu nos dois últimos séculos a “consciência histórica” portuguesa. Num país com evidentes fragilidades culturais e com uma taxa elevadíssima de analfabetismo, que só foi drasticamente reduzida nas últimas décadas do século XX, cabe perguntar como é que a “inteligentsia” pôde influenciar a criação dessa “consciência”. E os ensaios que compõem este livro procuram analisar essa relação, não se ocupando de uma perspectiva sociológica e da fixação da memória de determinados factos. “Sem perder de vista os contextos históricos, centramo-nos” – diz Sérgio Campos Matos – “no universo daqueles que cultivaram a memória nacional e a difundiram no espaço público”. De facto, apesar das carências educativas e culturais e num contexto totalmente diferente do actual no tocante à comunicação, é de realçar que os intelectuais mais marcantes dos séculos XIX e início de XX lograram uma influência muito significativa na opinião pública do seu tempo com repercussões posteriores. E o ensaísta vai mais adiante e diz que não partilha do entendimento de António Sérgio e de José Mattoso, segundo o qual foi o Estado o agente decisivo, perante uma sociedade civil muito frágil, para a construção da consciência nacional. Campos Matos prefere insistir na importância da “acção cultural que desempenharam as elites intelectuais”. Se é verdade que muitos intelectuais desempenharam importantes funções públicas e políticas, a verdade é que, segundo o autor, o decisivo foi o seu papel intelectual, a sua luz própria, e não propriamente a máquina do Estado por si só… Importa, de qualquer modo, salientar a importância que a dimensão histórica tem tido na cultura portuguesa contemporânea, numa multiplicidade de géneros: artes plásticas, artes decorativas, toponímia urbana, comemorativismo, simbologias etc.. A homogeneidade linguística e cultural, a permanência de uma fronteira estável ao longo de mais de sete séculos foram contribuindo para ajudar à presença forte do tema da consciência nacional. Afinal, os descobrimentos, a memória do Infante, os planos da Índia, tudo isso tem vindo a marcar a nossa cultura, a identidade e a consciência histórica, e os últimos séculos têm sido férteis em momentos que puderam funcionar como pontos de viragem num processo de estruturação da consciência histórica.
MOMENTOS AXIAIS
Refiram-se, assim, na formação da modernidade nacional, as invasões francesas, a saída da família real para o Brasil, os exílios liberais em Londres e a independência brasileira, que contribuíram para a gestação de uma narrativa liberal e laica, centrada no conceito de nação. E foi esta narrativa, que encontrou eco não só em Rocha Loureiro e José Liberato Freire de Carvalho, mas também em Garrett, projectando-se em Alexandre Herculano, desde a ficção à historiografia crítica. Houve, todavia, duas correntes contrapostas que coexistiram a propósito do conceito de nação: a liberal que seria desenvolvida, mais tarde, pelos jovens da Geração de Setenta nas Conferências do Casino e a ultramontana que não aceitou a ideia de decadência, contrapondo-lhe uma visão optimista da história e das suas glórias, aproveitando ainda a tese conspirativa centrada no antijesuitismo de Sebastião José e no que se lhe seguiu. Na leitura da decadência, o ensaísta interroga-se, porém, sobre se os críticos foram fiéis às fontes históricas e sobre se os argumentos ideológicos não obnubilaram a realidade histórica. “As relações história-ficção alimentam um debate que se prolonga até aos dias de hoje (tem-se esquecido todavia que toda a história é narrativa e que esta reflexão foi desenvolvida em Portugal pelo próprio Oliveira Martins)”. Por outro lado, importa não esquecer que o positivismo de Teófilo Braga insistiu nas origens étnicas da nação (moçárabes, celtas, lusitanos), no que foi seguido (apesar da parca fundamentação, mas sem surpresa) por republicanos, como Ricardo Severo, e por monárquicos, como António Sardinha, mas igualmente pelo nacionalismo do Estado Novo. E até aos anos quarenta do século passado, assistimos ao domínio positivista historiográfico com as excepções de Fidelino de Figueiredo, de Jaime Cortesão, de Duarte Leite e Veiga Simões. Em contraponto ao nacionalismo étnico, foi António Sérgio o autor que porventura mais influência exerceu – prolongando no século XX o criticismo histórico e social de Herculano, Antero e Oliveira Martins, através da “teoria do desvio histórico”– “como se o percurso nacional estivesse errado do século XVI em diante e a nação tivesse divergido a partir daí, de um ideal anterior, esse sim em sintonia com a Europa do tempo”. Segundo o idealismo racionalista, Sérgio propôs um futuro centrado num esforço de auto-reflexão e numa “reforma de mentalidades” comandada esta por novas elites que conviria formar. A recusa do etnicismo exigiria ainda a definição de um caminho de reforma económica e social.
REGRESSANDO AO SÉCULO XIX, é muito curioso acompanhar a escolha dos heróis, que dominaram os ritos de celebração e as estratégias políticas de convocação da memória histórica. Camões, Pombal, o Infante D. Henrique e Vasco da Gama são os escolhidos. Mas a fixação da memória histórica é dominada por critérios mais políticos que históricos. Por contraste, em relação à decadência, nasceu e desenvolveu-se no Estado Novo uma ideia de glorificação de um escol político, militar e religioso. Mas, apesar do afã doutrinador, “a consciência histórica dominante no regime de Salazar nunca foi única”. E assim as oposições afirmaram uma narrativa liberal e laica, marcada pelo pluralismo e pela abertura de espírito. Ortega em 1930 alertava para o risco de regresso da barbárie através dos sistemas totalitários e do domínio do homem-massa. Ora, a ignorância do passado e a perda de memória determinariam um esquecimento doentio da consciência histórica. No entanto, se a falta de memória é nefasta, o excesso da mesma é igualmente perverso. Por isso, há que promover uma dialéctica entre a herança cultural e a liberdade, de modo que a história e o passado não sejam anulados e que o presente não se deixe inebriar pelos mitos susceptíveis de anular a autonomia individual e a vontade colectiva. Estamos, pois, perante um estimulante conjunto de textos, onde a identidade nacional é analisada em ligação com a historiografia contemporânea e com os mitos, através de uma rigorosa apreciação de temas e personagens muito marcantes (D. Afonso Henriques, Infante D. Henrique, e Vasco da Gama), bem como dos autores mais influentes no período da análise (Herculano, Oliveira Martins e A. Sérgio).
Guilherme d’Oliveira Martins
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