A VIDA DOS LIVROS
De 15 a 21 de Dezembro de 2008.
“A Cor dos Dias – Memórias e Peregrinações” de António Alçada Baptista (Presença, 2003) merece ser relido nestes dias em que sentimos a necessidade de falar de “um sussurro de saudade”, como ele sentiu na morte do seu grande amigo Alexandre O’Neill. Neste livro, deparamo-nos com memórias, reflexões, invocações e ensaios que prosseguem aquilo a que António Alçada Baptista nos habituou. Aqui se sente a continuação da “Peregrinação Interior” e também a explicação de como o “escritor dos afectos” foi muito mais do que isso – foi o cristão no tempo, pondo as palavras ao serviço do amor das bem-aventuranças e de um sentido profético da vida.
A GENEROSIDADE GENUÍNA
Ao longo das páginas deste livro memorialista, sente-se que, longe de querer uma carreira ou de querer afirmar-se politicamente, AAB quis agir, na dicotomia de Péguy, no pólo profético, mais do que no lado político. Mas, sabendo que o campo político é o que influencia o dia a dia, não se alheou dele. Se quisesse ter tido sucesso político teria tido muito boas oportunidades. E nem se fale da sua amizade com Marcelo Caetano, que nunca limitou no que quer que fosse a sua liberdade de espírito. Para quem o conheceu e ouviu da sua boca o que pensava e o que sentia, o que esteve em causa no seu trajecto liga-se a três preocupações fundamentais: a necessidade de contribuir para uma abertura necessária na sociedade portuguesa, para pô-la a viver ao ritmo da Europa e do mundo civilizado; a consciência de que para um católico isso teria de começar pela intervenção dos crentes, num momento em que os “sinais dos tempos” apontavam para o que viria a ser o “aggiornamento” (que o Concílio viria a concretizar); e colocando os temas da liberdade pessoal, da dignidade humana e do amor cristão na ordem do dia como essenciais na sociedade moderna. Daí as suas preocupações e prioridades: “Se me perguntarem o que hoje me preocupa tenho que dizer que, para lá do lisboeta e do provinciano, surgiu um novo português que não sei como lhe chamar. Ele tem a idade dos frigoríficos, dos sistemas de crédito, do automóvel para cada um, da segurança social, da reivindicação de melhores salários. É gente que se está nas tintas para a história de Portugal e há certas palavras que estão fora do seu vocabulário como ‘deveres’, ‘valores’, ‘aspirações éticas’, ‘destino’, e certas coisas que eram acarinhadas e que até se podiam chamar lendas ou mitos, mas que davam um certo estofo à maneira como as pessoas se comportavam, tudo isso saiu de circulação”. Entre o ressentimento dos oprimidos e o sentimento de culpa dos privilegiados, António Alçada Baptista propõe, em nome de uma “aristocracia do comportamento”, que o poder e o dinheiro deixem de ser os bezerros de ouro do tempo presente. E, com uma actualidade extraordinária, cita o seu amigo Millôr Fernandes: “A economia compreende toda a actividade do mundo. Nenhuma actividade do mundo compreende a economia”. E nota: “A economia (…) deixou de ter qualquer relação com a realidade para se passar por dentro da cabeça dos economistas que resolvem as grandes crises financeiras à mesa dos seus gabinetes”. E o escritor acusa o domínio da ilusão e do virtual, com as consequências que sentimos actualmente (bem evidentes na “célebre história da não-criação de porcos”).
AMOR COMO COISA CONCRETA
“O amor é uma coisa concreta” (afirma AAB). “Ao contrário, uma ideia de Deus não se traduz num comportamento e, por isso, não pode ser uma religião. Alguns julgam que a verdadeira relação com Deus – como Deus é um ser superior, e os que se dedicam a isso, seres superiores -, voltam-se para as ideias, os silogismos, as lógicas, as abstracções. Ora, uma teologia abstracta é uma idolatria”. Ao lermos a obra do escritor, percebemos que Amor e Transcendência se ligam directamente. E se hoje lemos a encíclica de Bento XVI, onde fala da tripla dimensão do amor, agapé, filía e eros, facilmente percebemos que a “teologia narrativa” de António Alçada há muito que insiste nessa tripla dimensão, desde um tempo em que a alusão ao corpo era objecto de severa desconfiança. Apesar de incompreendido, o escritor soube ser inconformista no momento próprio, rompendo, mas preparando o terreno para antecipar a evolução e para dar um sinal de fidelidade essencial aos seus contemporâneos. O seu papel foi por isso muito mais importante do que possa parecer à primeira vista. Esteve à frente, sujeitando-se a todos os julgamentos sumários e injustos, à direita e à esquerda. E até foi alvo de simplificações acomodatícias na leitura do seu pensamento, à luz do “espírito do tempo”. O que fica, porém, é a valorização ética da dignidade da pessoa humana…
O CULTO DA MEMÓRIA
A memória prodigiosa de António Alçada enchia um serão ou tornava qualquer encontro um momento inesquecível. Felizmente que as foi escrevendo, pelo que uma parte das suas histórias não se perdeu. Mas ouvi-las naquela cadência que só ele sabia dar, e sentir a alegria do seu sorriso nunca poderá ser esquecido pelos seus amigos. O Raul Solnado dizia-me nas Mercês, quando fomos dizer-lhe um até à vista, que se tinha divertido muito com o António e que a recordação que fica é de contentamento. Todos sentimos isso mesmo. Ele era assim, mesmo com as suas depressões cíclicas. Nada do que António dizia e contava era fútil ou superficial. Como o atestam muitos dos diálogos dos seus romances (a começar em “Os Nós e os Laços”) o que estava em causa era o seu combate, como o de Jacob com o Anjo, pela liberdade e pela recusa de medos e sentimentos de culpa, que, para ele, eram inimigos da dignidade e da responsabilidade. E a memória da sua voz e o calor da sua amizade estão bem presentes, como se ele estivesse para vir de novo ter connosco para conversar interminavelmente, como tanto gostava. Mas António era enganador. Como gostava de dizer, gracejando, mesmo praticando as virtudes do ócio e as bem-aventuranças do lazer fartava-se de trabalhar. De facto, sempre o conheci a dar no duro, multiplicando-se em actos generosos e gratuitos no sentido mais nobre da palavra. E fazia-o serena e modestamente, sem se levar muito a sério, como Alexandre O’Neill. Foi um grande escritor, o melhor dos memorialistas do fim do século XX. Releiam-se os seus textos e veja-se como liga, com raríssima mestria, à realidade quotidiana o episódio aparentemente anódino, ao qual sabia sempre dar um significado em que a ética e a ironia se juntavam, naturalmente. Olhe-se o exemplo de “Peregrinação Interior”. Ao ler-se os dois volumes, fácil é de perceber que o escritor partilha connosco o seu caminho e a sua coragem. E se teve de romper, como cristão (na “Aventura da Moraes” e nas revistas “O Tempo e o Modo” e “Concilum”), abrindo caminhos para os tempos de liberdade que inexoravelmente viriam, a verdade é que, no prazo largo tal permitiu criar novas pistas de acção e de compromisso (que alargaram a oposição tradicional ao velho regime, à “desordem estabelecida”, como dizia, citando Mounier). O que pareceu ser, à partida, uma ruptura dilacerante (lembrava José Tolentino de Mendonça, depois de ter falado, contra medos e culpas, na Graça original, que tanto entusiasmava o nosso querido António) tornou-se com o tempo um gesto necessário que é o único modo de favorecer novos compromissos. Temos muito a agradecer à lucidez e ao sentido profético de António Alçada Baptista.
O MUITO QUE LHE DEVEMOS
A cultura portuguesa da democracia deve-lhe muito, desde a política do livro e da leitura ao apoio aos jovens escritores e criadores. E nada ficou como dantes a seguir a 1958 (com a candidatura de Delgado, o impulso da Moraes, a carta do Bispo do Porto a Salazar, a chegada do novo Papa). A editora e “O Tempo e o Modo” tornaram-se pontos fulcrais (com João Bénard da Costa, Pedro Tamen, Alberto Vaz da Silva, Nuno de Bragança) na renovação de ideias. Mário Soares, Salgado Zenha e Jorge Sampaio entraram no projecto da revista que abriu novas pistas que favoreceram a criação de uma democracia. Aplica-se-lhe afinal o que disse do Padre António Magalhães: “Naquele tempo morno, de ordem nas ruas e sobretudo nos espíritos, a sua presença fazia parte do imenso mistério da irresponsabilidade, do inconformismo e da loucura que marca, afinal, os homens de Deus”…
Guilherme d’Oliveira Martins
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