A VIDA DOS LIVROS
De 3 a 9 de Dezembro de 2007
Foto de meados dos anos 50 provavelmente na praia do Baleal (Noémia Delgado).
A POESIA É A VIDA – Inclassificável, O’Neill iniciou-se nas águas surrealistas, e durante a vida foi utilizando as palavras e as ideias como instrumentos subtis, mas implacáveis, num permanente jogo em que a realidade surge vista sob o prisma do absurdo, que revela, em toda a sua crueza, o ridículo e o dramático. “A poesia é a vida? Pois claro! / Conforme a vida que se tem o verso vem / – e se a vida é vidinha, já não há poesia / que resista. O mais é literatura, / libertinura, pegas no paleio; / o mais é isto: o tolo dum poeta / a beber, dia a dia, a bica preta, / convencido de si, do seu recheio… / A poesia é a vida? Pois claro! / Embora custe caro, muito caro, / e a morte se meta de permeio”. Poesia e dia a dia, eis o que ele sempre cultivou, e Lisboa com os lisboetas encontram-se a cada passo, como se quisesse reinventar Tolentino, Cesário e Gomes Leal juntos e ao mesmo tempo. Poeta satírico? Muitos pretenderam colar-lhe esse rótulo. Mas O’Neill era avesso a essas classificações e embirrava com esta em particular, que considerava incorrecta: “É evidente que a poesia que faço tem uma certa ironia, mas daí até ser considerada satírica…! Uma coisa pode ser brincada e nada ter a ver com a sátira. Até porque então o sujeito dessa sátira seria eu próprio, o que do ponto de vista das definições tradicionais do género não pode acontecer. O poeta satírico coloca-se sempre fora do objecto da sua sátira” – afirmou em entrevista de 1983. De facto, encontramos na sua obra uma atitude singular, onde a sátira, a ironia e o puro jogo de ideias e palavras se encontra em exercícios de inteligência e sentimento. Como disse de si mesmo em “O’Neill (Alexandre), moreno português, / cabelo asa de corvo…”: sofria de ternura (“Mas sofre de ternura, bebe de mais e ri-se / do que neste soneto sobre si disse”).
LISBOA ÀS MOSCAS – O poeta era, no entanto, alguém que se preocupava especialmente com o bom uso da língua e com o rigor das palavras. Se dúvidas houvesse, temos, além dos seus escritos, desde as traduções aos textos publicitários (sem cuidar, claro está, da poesia) o testemunho do amigo muito próximo, Ruben A., a quem reviu intensamente “A Torre da Barbela”, obra maior do seu autor, que está directamente associada a O’Neill, de quem Ruben disse ser “um dos pioneiros do conhecimento correcto do incorrecto da língua e um dos três maiores poetas portugueses ainda vivos (falava em 1975). Acato as sugestões. ‘A Torre da Barbela’ na sua primeira versão tinha 600 páginas, ficou aparada a cerca de 300”. Contudo, Alexandre O’Neill fazia questão de não se levar a sério (como o seu amigo António Alçada Baptista gosta de salientar). Leia-se, aliás, “Caixadòclos” e veja-se o testemunho vivo disso mesmo, no momento em que o poeta começava a ser reconhecido: “- Patriazinha iletrada, que sabes tu de mim? / – Que és o esticalarica que se vê. / – Público em geral, acaso o meu nome… / Vai mas é vender banha da cobra! / – Lisboa, meu berço, tu me conheces… / – Este é um dos que fala sozinho na rua… / – Campdòrique, então, não dizes nada? / – Ai tão silvatávares que ele vem hoje! / Rua do Jasmim, anda, diz que sim! / – É o do terceiro, nunca tem dinheiro… / – Ó Gaspar Simões, conte-lhes Você… / – Dos dois ou três nomes que o surrrealismo… / – Ah, agora sim, fazem-me justiça! / Olha o caixadòclos todo satisfeito / a ler as notícias”. Aqui temos a ilustração irónica, de uma imaginação delirante, que nos dá a originalíssima ligação entre o culto da língua e a linguagem quotidiana. “Lisboa às moscas, Veneza aos gatos…”, longe de qualquer facilidade no funambulismo das palavras, o que O’Neill pretende sempre é fazer desse jogo um motivo de gozo, mas também de reflexão existencial e até metafísica. Daí as dificuldades que a leitura da sua poesia coloca, uma vez que há sempre uma sombra projectada no tapete que temos de desvendar com cuidado.
MEU REMORSO… – Maria Antónia de Oliveira elaborou um plano de escrita que nos permite seguir literariamente os passos de Alexandre O’Neill, mas, mais do que isso, possibilita-nos tomar contacto com os meios em que o poeta se moveu. Nesta “biografia literária” estamos perante “o escritor e o seu mundo” e podemos, por isso, acompanhar uma certa vida literária lisboeta, que irá ter uma influência decisiva no tempo seguinte até aos dias de hoje. O leitor conta, por isso, com a escrita e com a obra multifacetada do biografado e com uma conjunto muito vasto de depoimentos pessoais que garantem uma compreensão de quem foi Alexandre O’Neill, da sua vida e obra, com base em factos e em interpretações fundamentais, desde os tempos do “Xana” até à presença dos “fantasmas”, passando pelo “surrealismo, doença infantil do Neo-realismo”, “o modo funcionário de viver” ou “a saca do O’Neill”. Há uma caminhada que acompanhamos, pontuada por uma reflexão permanente e por um rigor literário que surpreende quem confunde o facto de o poeta não se levar muito a sério com uma ideia de ligeireza poética, que nunca existiu em Alexandre O’Neill. Aliás, não há amadorismo neste escritor que a maior parte das vezes precisou dos textos para sobreviver. Lugares e pessoas são descritos por Maria Antónia Oliveira, como se fossem cenários e personagens de ficção, mas depressa percebemos que a vida é sempre mais rica e inesperada do que a ficção. E a que assistimos? Às vicissitudes do Grupo Surrealista de Lisboa, ao encontro e ao desencontro com Mário Cesariny, ao papel de António Pedro, à fotografia mítica de 1948 no Jardim da Parada (em que Alexandre se faz retratar com um osso a fazer de mão), à demarcação de 1951, quando O’Neill se aproxima do Neo-realismo (“através de pequenos mitos, um a um desfeitos, deu-se a necessária ilusão”), tudo permite ver uma personalidade complexa e inquieta cheia de talento. E esse talento permite-lhe interrogar-se sobre Portugal, em termos inteiramente novos, assumindo subjectiva e existencialmente o drama de um país fechado e em diminutivo. O poema citadíssimo pode sempre ser lido de novas maneiras, e facilmente percebemos que a nossa própria relação com a terra as gentes que está em causa. “Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo, / golpe até ao osso, fome sem entretém, / perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes, / rocim engraxado, / feira cabisbaixa, / meu remorso, meu remorso de todos nós”. O poema tornou-se emblemático, representando uma visão muito portuguesa, entre a exigência crítica e um afecto muito especial.
PORTUGAL – E Fernando Assis Pacheco conseguiu de O’Neill, em 1982, uma confissão espantosa: “Sem pieguice, digo-lhe que sempre ‘sofri’ Portugal, tanto no sentido de não o suportar (como todos nós, aliás), como no sentido de o amar-sem-esperança (como disse um parnasiano qualquer: amar sem esperança é o verdadeiro amor…). Eu tive a grande alegria de ver poemas meus completamente desactualizados depois do 25 de Abril. Mas afinal não estavam nada desactualizados, não. Como se pode ver. Quer dizer – o que é um péssimo sinal relativamente à minha capacidade para vaticinar – que a realidade fez de mim, novamente, um poeta actual. Até no fantasma do tempo a que você se refere. Espero que isto um dia acabe e eu fique bem desactualizado e para todo o sempre”. Declaração contraditória e paradoxal. Alexandre O’Neill com a esperança íntima de pôr a pátria nos eixos…
Guilherme d’Oliveira Martins