A VIDA DOS LIVROS
De 8 a 14 de Dezembro de 2008.
“Lisboa, História Física e Moral” de José-Augusto França (Livros Horizonte, 2008) é uma obra de minúcia, muito bem escrita por um conhecedor profundo da cidade de Lisboa e das suas histórias paralelas, sobrepostas e cruzadas. E se é certo que o autor se afirma “contemporanista”, a verdade é que aquilo que nos é dado neste livro de cerca de 870 páginas é uma leitura de quem sabe que apenas se pode entender uma cidade se soubermos as suas raízes e o caminho seguido – povoado de vidas e de espírito, de realidades físicas e morais. Antes de entrar na obra, importa fazer uma referência ao editor, Rogério Moura (1925-2008), que nos deixou há poucos dias e que foi um animador desta que viria a ser a sua última publicação. Em boa hora insistiu com o autor, e o resultado é largamente positivo. Havia que contribuir para que o público conhecesse melhor a cidade, não a partir de considerações académicas, mas segundo uma análise rigorosa que pusesse ao dispor de todos uma obra informada e culta de um erudito que se apresenta como experimentado e acessível peregrinador olisiponense.
VINTE E TRÊS PISTAS
“Não se trata de fazer nesta obra história do urbanismo nem da arquitectura, nas especificidades das suas disciplinas, para além do necessário, quando de organização urbana e de edificação da urbe se trata” – afirma-nos o autor. Do que se trata é de olhar a cidade no tempo, com os seus elementos de continuidade e descontinuidade – “as pedras mortas, que se acumulam por protecção, e as vivas (…) que lhes dão sentido e necessidade, devem ser correlativas, para que a cidade exista em sua coerência”. E assim há vinte e três momentos que José-Augusto França destaca e servem de referência permitindo fazer a história da cidade como corpo vivo: a conquista de Lisboa (1147); a revolução joanina (1383); os painéis de D. Afonso V (1471); o mosteiro dos Jerónimos (1501); a batalha de Alcântara (1580); a visita de Filipe II (1619); a revolução do 1º de Dezembro (1640); a procissão do Corpus Christi (1719); o terramoto do 1º de Novembro (1755); a estátua equestre (1775); a basílica da Estrela (1789); o palácio da Ajuda (1802); a entrada do exército liberal (1833); as “Conferências do Casino” (1871); o Zé Povinho (1875); a Avenida da Liberdade (1879); o “grupo do Leão” (1885); a revolução do 5 de Outubro (1910); a revolução do 28 de Maio (1926); a Exposição do Mundo Português (1940); o Metropolitano e a Ponte (1959-1966); a revolução de Abril (1974); Exposição mundial (1998). Estes símbolos ou acontecimentos permitem, a partir do critério que o autor escolheu (e que é adequado aos fins pretendidos) compreendermos as personagens e os factos, já que os ligamos a elementos que conhecemos e podemos situar diacrónica ou sincronicamente. Se seguirmos o índice analítico (os diversos índices são, aliás, preciosos instrumentos de trabalho), vemos uma preocupação compreensiva que nos guia sucessivamente pela Pré-História de Lisboa, entre o sítio e os habitantes; pela Lisboa Antiga, romana e muçulmana; pela Lisboa Medieval, desde a conquista aos prolegómenos da expansão; pela Lisboa Manuelina, do Paço da Ribeira à celebração da grandeza imperial; pela Lisboa Maneirista, da glória à perda da independência; pela Lisboa Filipina, na primeira cidade peninsular condicionada pela “Corte na Aldeia”; pela Lisboa Barroca, regressada à condição de capital, entre dúvidas e intrigas; pela Lisboa Joanina, como cidade opulenta que deseja modernizar-se; pela Lisboa Pombalina, que se torna símbolo de uma nova atitude e de uma nova mentalidade; pela Lisboa Oitocentista, de um século longuíssimo de mil mudanças e conflitos, desde as invasões francesas ao Ultimatum inglês, passando pelas guerras civis e pela liberdade regeneradora; até à Lisboa Novecentista, do republicanismo à Expo-98, passando pelo Estado Novo e pelo reconquista da liberdade.
ALGUMAS REFERÊNCIAS
Que cidade antiga sobrevive? “O castelo, sítio régio e paço, vigiava o todo, numa heráldica urbana que continuava a ser necessitada durante mais de um século e três reis”… As ruas medievais desenvolviam-se num denso emaranhado que descia até ao rio e ladeava o esteiro. Do Rossio à Rua Nova as ruas eram tortuosas, com becos e passagens. A pouco e pouco, a cidade tornou-se pequena para albergar quem a ela afluía, sobretudo depois do final do século XIV. É esta cidade que dará lugar à Lisboa imperial, que D. João II deseja tornar cabeça de uma economia dominante na Europa na entrada do Mediterrâneo. E, ao lermos, um delicioso diálogo imaginado pelo autor sobre a génese dos painéis, aqui designados como de D. Afonso V, na oficina lisboeta de Nuno Gonçalves, podemos entender a complexidade das relações políticas num tempo marcado pela tragédia de Alfarrobeira e pelo anúncio do apogeu da expansão portuguesa. A cidade progrediu mercê do afluxo de riquezas (o transporte…). O tempo de D. Manuel, o grande mercador do Ocidente, foi marcado pela prosperidade das casas da Mina e da Índia. Mas Gil Vicente falou dos “fumos da Índia” e das muitas ilusões que provocavam. E por isso refere Ninguém, que “busca consciência” e Todo o Mundo, que procura dinheiro. “O quotidiano da vida em Lisboa centralizada apresenta o revés das suas riquezas, ou explica-as ao nível de uma humanidade pobre e lograda, fazendo pela vida à margem da história, ou sendo a própria história na sua realidade”. O século XVI culminará na crise dinástica, que consumou os sinais de decadência, contra os quais Camões se levantou. Apesar de tudo, no século XVII, Lisboa é uma das mais importantes cidades da Europa, só excedida por Paris e Nápoles em população (165 mil almas). O torreão de Terzi do Paço da Ribeira e S. Vicente de Fora são as obras-primas desse tempo. Mas sem Corte decisória a cidade tornou-se subalterna e provincial – retratada com ironia na “Corte na Aldeia” de Rodrigues Lobo. A tentação autoritária de Olivares e os efeitos da guerra dos trinta anos levarão, porém, a que a capital recupere voz na “Restauração”.
A CIDADE QUE RESSUSCITA
O ouro do Brasil tornou o reinado de D. João V um momento de esplendor e de excesso, de que foi exemplo a arquitectura efémera da procissão do Corpus Christi de 1719 (descrita pelo Padre Inácio Barbosa Machado). É o momento da azulejaria dos Oliveira Bernardes, da extraordinária capela de S. João Baptista em S. Roque, da pintura de Vieira Lusitano e do Aqueduto das Águas Livres. Em 1755 essa Lisboa que o ouro do Brasil enriquecera foi arrasada pelo terramoto. José-Augusto França entra no seu terreno de eleição. E relemos com gosto a sua lição sobre o pombalismo. O plano de acção de Sebastião José de Carvalho é notável de precisão e de autoridade. É um plano moderno, visionário, de antecipação e recorre à experiência internacional. Se virmos a cidade tal como existe, fácil é de compreender a importância de conhecer essas primeiras linhas de desenvolvimento. Na cronologia do urbanismo ocidental, Lisboa faz parte, com S. Petersburgo e Washington, de um conjunto marcado pela definição iluminista. E o século XIX prosseguiu e alargou a experiência do Conde do Oeiras; com grande fidelidade aos planos inicialmente traçados. E se notamos a presença do estudioso do século XVIII, também usufruímos nesta obra da experiência do autor de uma obra fundamental sobre o Romantismo. A cidade, onde as tropas liberais desembarcaram vitoriosamente em 24 de Julho de 1833, foi alvo de intervenções fundamentais, como a abertura discutidíssima da Avenida da Liberdade, sob o impulso de Rosa Araújo, o celebrizado “Cócó”, ou a concretização do Aterro da Boavista e o Plano de Melhoramento do Porto de Lisboa. Mas desde as Conferências do Casino ao Grupo do Leão, passando pelo activíssimo jornalismo político, em que se destacou o humor de Rafael Bordalo Pinheiro, e pelos combates ideológicos que levaram ao movimento de 5 de Outubro de 1910 (e às vitórias eleitorais em Lisboa dos republicanos) a cidade de oitocentos e novecentos fervilhou de actividade. É esta cidade que não pára (de Duarte Pacheco à Expo-98), dotada, com o tempo, de um forte sentido de capitalidade (“Portugal é Lisboa!”, dirá Eça), que José-Augusto França descreve com familiaridade, rigor e um estilo sempre correcto e acessível, dotado de um fino humor, que nos enche de prazer.
Guilherme d’Oliveira Martins
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