A VIDA DOS LIVROS
De 10 a 16 de Novembro de 2008.
A reedição de “Causas da Decadência dos Povos Peninsulares” de Antero de Quental, com prefácio de Eduardo Lourenço (Tinta da China, 2008) merece ser assinalada, pela qualidade da obra e pela sua evidente oportunidade. A conferência proferida por Antero no Casino Lisbonense, no longínquo dia 27 de Maio de 1871, chegou até nós envolta em roupagens de celebridade, mas também de mito. E pode dizer-se que nessa reflexão o autor quis ser revolucionário; e marcou, por isso, claramente as gerações intelectuais que se seguiram. E, se é verdade que o caso Dreyfus iniciou na Europa o envolvimento activo dos intelectuais nos debates políticos, temos de lembrar que em Portugal uma geração de jovens, que iniciara os seus passos de ruptura em Coimbra, na senda dos ventos que vinham da Europa, antecipou essa necessidade de compromisso.
“O Desterrado” de Soares dos Reis (1872).
AS CONFERÊNCIAS DEMOCRÁTICAS (até pela repercussões que tiveram, desde o momento em que se fizeram, e pela projecção nacional dos seus temas e activistas) prenunciaram esse tempo de intervenção social, que o século XX viria a ser por caminhos múltiplos. E, assim, mais do que a preparação de uma revolução política, com repercussões apenas imediatas, o que Antero de Quental e os seus pretenderam foi um despertar nacional. Isso mesmo não o compreenderia Teófilo Braga, demasiado apegado a um projecto republicano positivista. No entanto, hoje sabemos, a influência das Conferências ultrapassou em muito as fronteiras limitadas de um mero movimento de contestação. Conservadores e progressistas, republicanos e socialistas sofreram a influência do impulso pedagógico que está condensado na magistral conferência de 27 de Maio. No fundo, há uma nova atitude, que não só completa as intervenções fundamentais da “Questão Coimbrã”, não numa perspectiva literária e sim segundo um pensamento social renovador, mas também define, política e espiritualmente, um apelo à capacidade criadora dos povos peninsulares. Para trilhar um novo sentido, haveria que fazer a crítica das condições propiciadoras da decadência, o que acontece num dos melhores textos da nossa literatura: “Erguemo-nos hoje a custo, espanhóis e portugueses, desse túmulo onde os nossos grandes erros nos tiveram sepultados: erguemo-nos, mas os restos da mortalha ainda nos embaraçam os passos, e pela palidez dos nossos rostos pode bem ver o mundo de que regiões lúgubres e mortais chegamos ressuscitados”. E deparamo-nos com os fenómenos capitais definidores desse decaimento: “três, e de três espécies: um moral, outro político, outro económico. O primeiro é a transformação do Catolicismo pelo Concílio de Trento. O segundo, o estabelecimento do Absolutismo, pela ruína das liberdades locais. O terceiro, o desenvolvimento das Conquistas longínquas”…
A NOVA EDIÇÃO DAS “CAUSAS” é antecedida de um luminoso prefácio de Eduardo Lourenço, que procede a uma análise do texto em termos que permitem não apenas compreender o seu lugar na nossa cultura, mas também projectá-lo no tempo que entretanto decorreu. Estava em causa uma nova ideia de cultura: «uma Cultura que punha em causa (no dizer de E.L.), radicalmente, a tradição cultural portuguesa na sua expressão tridentina, e em última análise católica. O fim trágico de Antero esconde-nos (ou resume para outros, clínica e miticamente) a essência histórica da sua tragédia cultural que não reside no seu conteúdo mas na sua excepção. Em suma, no seu isolamento. Só para ele era válida – no sentido doloroso e exaltante – a célebre frase da carta de Wilhelm Storck de que a sua geração teria sido a primeira ‘a sair conscientemente dos caminhos da tradição’». Mas essa atitude de rompimento não poderia deixar de ser paradoxal. Afinal, como insiste o prefaciador, “nada substitui uma religião se não outra em que o sentido da perdida se regenera e se exalta”. Daí que o que está em causa na atitude do conferencista das “Causas” seja a apresentação de um caminho radicalmente novo, não para mudanças formais, mas para transformações capazes de compreender o género humano e a sua evolução. A um tempo, propõe-se uma transformação radical e a procura de um fulcro pragmático para as mudanças sociais que se exigiam no sentido da justiça. E o que Antero verbera, pois, é o afastamento e a distância dos povos peninsulares relativamente a uma Europa “pensante e industriosa”. O que estaria em causa, assim, teria a ver com a recusa do atraso e do seu fatalismo e de “um destino subalterno e humilhante”. Eis por que razão Antero de Quental e os seus pretenderam um sobressalto geral, sobretudo sabendo que a sociedade portuguesa vivia alheada dessa consciência. E assim se compreende que as gerações cultas que se lhes seguiram – António Sérgio e os seus discípulos, como Joel Serrão, mas também Adolfo Casais Monteiro e até Jorge de Sena – tenham feito das “Causas” o texto fundador na definição do “cânone crítico” da “nossa Modernidade”. E é curioso verificar como E.L. neste prefácio, define também o seu próprio pensamento – matricialmente influenciado (de modo heterodoxo) pelas ideias de Antero de Quental.
A PARTIR DE UMA ATITUDE atenta ao sagrado e ao religioso, demarcada nitidamente de todo o conformismo: “essa foi a revolução cultural anteriana, bem mais importante que a apologia de uma mera Revolução ideal e idealista que seria menos uma inversão de signos como será a de Nietzsche, ou mesmo de um ateísmo assumido, do que uma nova revolução susceptível de ser para o mundo moderno o que o Cristianismo fora para o mundo antigo”. Compreende-se que E. Lourenço considere que a única guerra teológico-intelectual válida seja a que opõe Lutero e Erasmo. E nesta polémica Antero assume-se claramente do lado do autor do “Elogio da Loucura”, procurando ligar Fé e Razão, e não sacrificando uma à outra. E o pensador micaelense lamenta, assim, que a Reforma não tenha podido passar os Pirinéus, fazendo com olhos do seu tempo, e na senda do pensamento revolucionário liberal, como o de Garrett e Herculano (em nome da liberdade de espírito), fiel ao ânimo dos bravos do Mindelo, de que seu pai fizera parte. Antero cultiva o drama, Eça usará a sátira e Oliveira Martins afinará a crítica histórica pela ironia e pela tragédia. Lourenço completa, porém, a força transformadora das “Causas” referindo-se a dois outros textos fundadores da modernidade no século XX: o “Ultimatum” de Fernando Pessoa e o “Manifesto Futurista” de José de Almada Negreiros – igualmente definidores de um caminho que tem origem do grito das Conferências Democráticas.
O ESCÂNDALO DAS CONFERÊNCIAS deu-se, contudo, quando a questão religiosa iria ser tratada por Salomão Saragga. O regime liberal não tolerou o tratamento desse tema e surgiu a proibição (contra a qual Herculano se rebelaria). Antero já alertara, todavia, no tratamento das “Causas”, como lembra E.L. para o facto “da liberdade de crer faz parte integrante a de não crer, como sombra dela”. Como Alexandre Herculano compreendeu muito bem (ele que discordava do pendor igualitário da nova geração), haveria que reconhecer cultural, social, e politicamente o “lugar da liberdade não apenas de pensar, mas de humanamente respirar e existir”. Antero exprimiu-o com meridiana clareza. E Eduardo Lourenço faz questão de sublinhar a traço grosso que “a esse título e a muitos outros, o texto de Antero é menos o do passado que questionou que o do futuro para que abriu e onde estamos órfãos dum sentido que mereça esse título e saudosos dele”. E assim Antero é apresentado actualíssimo, moderno e capaz ainda de abrir horizontes novos.
Guilherme d’Oliveira Martins