A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

Há dias, em Cracóvia, recordámos, com sentimento de gratidão, o conde Atanazy Raczynski (1788-1874), autor de duas obras fundamentais sobre a História da Arte portuguesa: “Les Arts en Portugal – Lettres adressées à la Societé Scientifique de Berlin et accompagnées de documents”, 1846, e “Diccionnaire histórico-artistique du Portugal”, 1847 (ambos disponíveis na Internet). As obras são extraordinárias pela minúcia e rigor e abriram novos horizontes na historiografia. Invocamo-las hoje, no início do relato do nosso périplo pela Europa Oriental.

A VIDA DOS LIVROS
de 15 a 21 de Setembro de 2008


Há dias, em Cracóvia, recordámos, com sentimento de gratidão, o conde Atanazy Raczynski (1788-1874), autor de duas obras fundamentais sobre a História da Arte portuguesa: “Les Arts en Portugal – Lettres adressées à la Societé Scientifique de Berlin et accompagnées de documents”, 1846, e “Diccionnaire histórico-artistique du Portugal”, 1847 (ambos disponíveis na Internet). As obras são extraordinárias pela minúcia e rigor e abriram novos horizontes na historiografia. Invocamo-las hoje, no início do relato do nosso périplo pela Europa Oriental.


 


Provavelmente, o jovem Damião de Góis, em missão diplomática no tempo de João III, no ano de 1523, não se apercebeu da extraordinária revolução (no sentido literal do termo) que estava a operar-se a partir da então capital do reino polaco, mas a verdade é que lá esteve, e sentiu por certo o ambiente aberto e tolerante do coração da Galicia. Foi esse o nosso primeiro encontro, na senda dos portugueses ao encontro da sua História, quando chegámos às plácidas margens do Vístula, num dia de sol e calor do final de Agosto. Quando Góis esteve em Cracóvia havia nove anos que Nicolau Copérnico (1473-1543) começara a divulgar as suas descobertas sobre o movimento da Terra em volta do Sol. No entanto, as novas concepções desenvolvidas pelo clérigo não suscitaram perturbação de maior entre os eclesiásticos da Universidade Jaguelónica, ao contrário do que aconteceria no século seguinte em Roma com Galileo Galilei. Houve até grande interesse e apoio aos trabalhos de Copérnico. E hoje o Museu universitário orgulha-se desse exemplo precursor, recordando o mestre numa pintura de Jan Matejko intitulada significativamente “Copérnico conversando com Deus” (de 1872). A busca da verdade e o culto da razão crítica eram, no fundo, uma emanação natural do espírito. E o cientista escrupuloso não deixava de mostrar as suas dúvidas: “quando dediquei algum tempo à ideia, o meu receio de ser desprezado pela sua novidade e aparente contra-senso quase me fez largar a obra feita”.


Venho a Cracóvia sempre com gosto. É uma cidade acolhedora, com pessoas afáveis e hospitaleiras. Um grande amigo, Jacek Wosniakowski, professor de História de Arte, espírito livre, companheiro do Cardeal Woytila, primeiro Presidente da Câmara de Carcóvia depois de 1989, ensinou-me a ter uma especial ternura pela cidade e por tudo o que lhe diga respeito. Desta vez não pude vê-lo, mas estive na “sua” Villa Decius, com Danuta Glondys, recordando as reflexões e os ensinamentos de uma das grandes referências culturais da Europa do fim do século. Nos últimos anos houve uma alteração no movimento das ruas, na multiplicação de iniciativas culturais e artísticas. É cada vez mais fácil chegar a Cracóvia, e vale sempre a pena visitar a cidade, de gente requintada e acolhedora. E na relação com os portugueses há uma referência que não pode ser esquecida, é que os povos indo-europeus, célticos, que aqui se fixaram e deram nome à região (Galícia) são certamente os mesmos que vieram até ao noroeste da Península Ibérica. Daí a empatia natural. Sentimos, de facto, que há um apelo antigo que vem da noite dos tempos e que leva a sentirmo-nos próximos.


No Castelo de Wawel invocamos pelo estilo românico original os alvores da monarquia polaca e a conversão ao cristianismo, no século X, com Mieszko I, mas lembramos ainda que no século XIII houve a devastação da Horda de Ouro, e que só no século XIV, finda a dinastia Piast e iniciada a Jaguelónica, Ladislau II e a rainha Santa Edviges restauraram o antigo prestígio do reino. Desse período é o estilo gótico da Catedral, lugar da coroação dos Reis da Polónia. S. Estanislau (século XI), fundador do templo, associa-se aos outros três santos de Cracóvia – Venceslau, Floriano e Adalberto. A cidade foi, ao longo dos séculos, multi-religiosa e multi-étnica – o que permitiu ser um lugar cosmopolita de encontro de culturas. A antiga aristocracia era numerosa o que levou à existência de uma representação parlamentar actuante, que favoreceu a autonomia cultural e cívica de Cracóvia ao longo dos séculos. Hoje é maioritariamente católica, mas não deixa de sentir-se a importância da abertura, dada pela Universidade e pelos jovens intelectuais e artistas (como ouvimos em Villa Decius, a propósito do renascer das preocupações sociais). Em frente de cada um dos sarcófagos dos reis e dos heróis, recordámos a grandeza a que chegou a nação na idade de ouro (séculos XV e XVI), abrangendo Lituânia, Hungria e Boémia. Ladislau I, Casimiro III, o grande, fundador da Universidade, em 1364, a rainha Edviges (coroada como “rei” por direito próprio), Ladislau II, até Jan III Sobieski, monarca das duas nações (Polónia e Lituânia), rei letrado e militar experimentado, que salvou a língua polaca, ao ter papel importante na vitória sobre os otomanos, no cerco de Viena em 1683. Aliás, a cidade estava cheia de pendões invocativos do cerco de Viena e do sucesso de João de Sobieski, já que se assinalam agora os 325 anos do evento. Mas esse já é um tempo que se seguiu ao que ficou conhecido por “dilúvio”, no final da guerra dos trinta anos (1648), correspondente à invasão sueca e à revolta cossaca de Chmielnicki, que devastaram o país tornaram-no uma sombra decadente do que fora… Mas avancemos. O castelo de Wawel é surpreendente. A lenda do dragão, vencido pelo ardil do sapateiro Dratewka, é repetidamente invocado. A presença da Renascença italiana é muito evidente. A arcaria que rodeia o pátio de entrada do palácio e os frisos decorativos lembram nitidamente Florença e o Ospedale deggli Innocenti de Brunelleschi. O período de ouro de Cracóvia (séc. XVI) assume o gosto italiano, reproduzindo com um século de diferença o renascentismo italiano. No interior do castelo, a decoração austera permite-nos encontrar várias preciosidades, de impossível enumeração exaustiva – tapeçarias de Flandres, representando cenas do dilúvio, dois retratos magníficos de Rubens de Ladislau Wasa (o IV de seu nome), em busto e a cavalo, uma imponente invocação da Batalha de Lepanto (1591) da autoria de Dolabella, e um pequeno quadro de Dosso Dossi (do círculo de Rafael), que entusiasmou o nosso companheiro de viagem Fernando António Baptista Pereira (que o descobriu inesperadamente), uma alegoria à pintura (1515-18), representando Júpiter a pintar borboletas sob a inspiração de Mercúrio e tendo como testemunha a Virtude. Por fim, impressiona-nos a misteriosa sala do trono, cujo tecto está repleto de cabeças esculpidas de súbditos dos Senhores da Polónia. A cidade plana aconselha as caminhadas. Depois de descermos do Castelo, encontramo-nos na Rua dos Cónegos.


Pela tarde os turistas acotovelam-se e têm de se afastar à passagem das carruagens puxadas a cavalos. Passamos pela inconfundível igreja jesuítica de S. Pedro e S. Paulo, por Santo André e chegamos a Rynek Glówny, a maior praça europeia com o velho mercado de panos ao centro e a Basílica de Maria Santíssima (Mariacki), construída pelo burgueses da cidade, com duas torres de 81 e 69 metros, onde de hora a hora soa um toque de clarim, que quase passa despercebido tal é a algazarra da multidão. Se a Catedral invoca a monarquia, a Basílica proclama a importância do burgo e dos seus comerciantes: nartex barroco, vitrais do século XIV, intervenções de estilo otoniano (Sacro-Império), decoração arte nova. Os estilos misturam-se e completam-se, mas todas as atenções vão para o extraordinária obra de Veit Stoss, o maior retábulo gótico existente na Europa, com figuras que atingem os 2,70 metros de altura, realizado entre 1477 e 1489, em madeira de carvalho e tília – que representa a Dormição, a Assunção e a Coroação de Maria. As cinco máquinas retabulares constituem o fulcro dos altares-mores. Sobre o tema, tenho no meu caderno duas páginas repletas de notas minuciosas, mas só cito o sublinhado – o movimento é fantástico, a agitação dos apóstolos parece dever-se à visão simultânea que têm de vários tempos, o dos céus e o da terra. A sublimidade da peça, que recorda a reflexão sobre o tempo de Santo Agostinho, deve apreender-se em reservado silêncio. O cosmopolitismo de Cracóvia é marcante. Objectos e memórias associam-se. O astrolábio árabe de 1054; a Biblioteca do Collegium Maius; a referência de Justus Decius, secretário do rei Segismundo e amigo de Desidério Erasmo e de Martinho Lutero; os ensinamentos do rabino Mojzesz Isserles (Remuh); o mecenato dos Czartoryski (a quem se deve o Museu de Arte, onde vimos a Dama do Arminho de Leonardo e “Paisagem com samaritano” de Rembrandt); a grande poesia de Adam Mickiewicz; as sinagogas do bairro judeu de Kazimierz de raízes antiquíssimas (desde o século X e depois do século XV com a chegada dos sefarditas peninsulares); as primeiras leis de protecção do património cultural no alvor do século XIX na República de Cracóvia, a presença bem próxima do Cardeal Woytila, o papa João Paulo II – tudo isso pudemos recordar, calcorreando as ruas da cidade e gozando as margens verdejantes do Vístula… 
                                                                 Guilherme d’Oliveira Martins

Subscreva a nossa newsletter