A VIDA DOS LIVROS
De 25 a 31 de Agosto de 2008
“Histórias do Bom Deus” de Rainer Maria Rilke (tradução de Sandra Filipe, edições Quasi, 2008) é uma reunião de textos autónomos e encadeados, escritos por um dos grandes artistas da literatura europeia dos alvores do século XX. Trata-se de uma obra-prima de génio e subtileza. Esta publicação insere-se numa iniciativa de férias de grande mérito do “Diário de Notícias”, de apoio à leitura, abrangendo pequenas obras (com cerca de cem páginas) de autores referenciais como Cervantes, Tolstoi, Dostoievski, Tchekov, Kafka, Dickens, Wilde, Flaubert ou Conrad e muitos outros. Num tempo em que, muitas vezes, não há cuidado suficiente com a qualidade das obras distribuídas gratuitamente com os jornais, merece especial elogio esta colecção pelo equilíbrio, interesse e exigência postos nela pelos seus organizadores editoriais. E o sentido educativo é evidente, estando ao alcance de jovens e adultos.
AO PRINCÍPIO ERA O VERBO.
Rilke (1875-1926) nasceu em Praga e foi um dos mais marcantes poetas de língua alemã do século passado. Fez estudos nas Universidades de Praga, Munique e Berlim. Começou a publicar poesia em 1894 – “Vida e Canções”. Em 1899 viaja até à Rússia a convite de Lou Andreas-Salomé (1861-1937), filha de um general russo, que conheceu bem Nietzsche e Freud, e que se tornou sua amante. A passagem pela Rússia deu-lhe uma especial inspiração religiosa, de que “Histórias do Bom Deus” é um exemplo significativo. “A influência de Deus é muito forte. O que quer que se traga da Europa, as coisas do Ocidente são pedras logo que transpõem a fronteira. Por vezes, pedras preciosas, mas apenas para ricos, os chamados ‘cultos’, enquanto que do outro lado, do outro Reino, vem o pão de que o povo vive…”. A natureza, dada a exuberância das paisagens russas, passou então a ser vista por Rilke como expressão divina, presente em toda a parte e em todas as coisas. E as “Histórias do Bom Deus” (1900) são um exemplo extraordinário desta atitude. «Deus sobressaltou-se. (…) Olhou rapidamente para baixo. De facto, lá dera-se uma coisa praticamente irreparável: um passarinho voava atordoado de um lado para o outro sobre a Terra, como se tivesse medo, e Deus não estava em condições de o ajudar a voltar a casa, uma vez que não vira de que floresta o pobre animal saíra. Então ficou aborrecido e disse: ‘Os pássaros devem ficar onde Eu os coloquei!’». A partir dos primeiros anos do século, afastou-se do lirismo e do simbolismo, preocupando-se progressivamente em recorrer a um estilo concreto. É o tempo do “Livro de Horas”, a que Etty Hillesum se referiu de um modo apaixonado. Em Paris, torna-se secretário de Rodin, e a arte do escultor exerce uma influência decisiva na sua poesia. Quando se acastelam no horizonte as nuvens de um conflito de grandes proporções, começa a escrever em Trieste (lugar mágico, onde sente o espírito do centro da Europa, à beira do Mediterrâneo) “Sonetos a Orfeu” e “Elegias de Duíno”, escritas num castelo fantástico, pleno de memórias e de esperanças. Em 1914, no início da I Guerra Mundial, Rainer está em Munique, onde permanecerá até 1918. De então até à morte viverá na Suiça, onde prossegue a sua criação literária fulgurante.
O HOMEM DESCONHECIDO.
As histórias de Rilke são simples e enigmáticas. Qualquer criança pode compreendê-las, mesmo quando inquietantes, como aquela contada a um “homem desconhecido”, que se interrogava porque foi ele o destinatário dela. «“Que outra pessoa me havia de compreender? O senhor vem a minha casa sem posição, sem ofício, sem qualquer dignidade temporal, quase sem nome. Já escurecera quando entrou, apenas eu notei na sua fisionomia uma semelhança”. O homem desconhecido levantou o olhar interrogativamente. “Sim”, repliquei eu ao seu olhar mudo, “muitas vezes penso que talvez a mão de Deus se encontre de novo entre nós”». A cada passo, se invocam as crianças, únicas capazes de ouvir, e de compreender estas histórias, porque há modos de contar para tudo entenderem. E o certo é que Rilke diz que, além de compreenderem, gostam infinitamente das narrativas. E Ewald, o paralítico, pergunta-se. “Nem sequer posso ir ao encontro da Morte. Muitos tropeçam nela a caminhar. A Morte tem medo de lhes entrar em casa e chama-os para fora, para outras terras, para a guerra, para o cimo de uma torre altaneira, para cima duma ponte vacilante, para o deserto, para a loucura. A maioria vai buscá-la à rua, e sem dar por isso leva-a para casa, às costas. Porque a Morte é preguiçosa; se os homens não a importunassem a toda a hora, quem sabe? Talvez se deixasse cair no sono”. Rainer usa incessantemente todos os ardis para poder entender o Bom Deus e ir ao Seu encontro, mesmo descobrindo que Ele se esconde por vezes, usando subterfúgios, mas revelando-se sempre nos mais pequenos pormenores. E há como que um misto de jogo de escondidas e de cabra-cega, em que Deus omnisciente consegue sempre apanhar quem se escondeu. E cabe ao escritor ir revelando, subtilmente, o modo como o bom Deus acaba por prevalecer, como o criador que conhece bem as suas criaturas.
NO GUETO DE VENEZA.
As histórias têm sempre um cenário especial, para que se compreenda bem a sua singularidade, e o facto de corresponderem sempre a uma revelação muito especial. “Quando se passa debaixo da ponte de Rialto, em frente ao Fondaco de Turchi e do Mercado do Peixe, e se diz ao gondoleiro: ‘À direita!’, ele olha-nos um bocado admirado e pode eventualmente perguntar-nos: ‘Dóve?’. Mas insiste-se em voltar à direita e desemboca-se num dos pequenos canais sujos, regateia-se, barafusta-se com ele, e, através de ruas estreitas e pórticos enferrujados, desembarca-se numa praça vasta e vazia”. Mas, no gueto de Veneza, o espaço era cada vez menor e, à medida que a população aumentava, os prédios cresciam em altura. Um ancião, homem sábio e experiente, Melchisdech, decidiu que haveria de habitar sempre no lugar mais elevado do gueto, e por isso foi mudando de casa, à medida que novas construções eram feitas. Numa manhã de Outono, de indescritível claridade, Melchisdech foi descoberto na beira do telhado, inclinando-se perigosamente para a frente, como se quisesse sacrificar-se. “O povo em baixo, reunido na praça, olhava para cima. Gestos e ditos dispersos ergueram-se da multidão, mas não chegaram até ao velho solitário que rezava. (…). O velho entretanto continuava a levantar-se com altivez e a baixar-se com humildade. E em baixo a multidão, sem o perder de vista, aumentava sempre. Terá ele visto o mar, ou Deus o Eterno em sua Glória?”. Poder-se-á perguntar que viu o velho judeu. Para uns o mar, para outros também o mar. E as crianças foram decerto as primeiras a entender a importância desse estranho lugar tão perto céu…
COMO O DEDAL SE TORNOU NO BOM DEUS.
Com uma extraordinária pureza e simplicidade, surge a dúvida sobre se seria possível levar o bom Deus, na mão ou metido num bolso, de modo que pudesse estar sempre presente. As crianças procuraram então uma coisa pequena que pudesse ser levada para toda a parte. E depois de pesquisar e vasculhar tudo, descobriram, com a pequena Resi, um dedal, claro como a prata e singular na sua beleza. Hans até fez uma escala com os amigos para que todos pudessem guardar aquele precioso símbolo. E tudo se passou bem, até que um dia a pequena Marie perdeu o dedal. A procura foi inútil e desesperada. Um homem apareceu, porém, e perguntou o que procurava, e ela respondeu: “o bom Deus”. Por encanto, começando a caminhar, o desconhecido disse: “E vê lá que dedal lindo eu achei hoje…”. Rainer Maria Rilke tenta, afinal, colocar-se na posição das crianças ávidas de histórias, mas sobretudo de encontrar o bom Deus. Que melhor modo de tentar perceber o mundo?…
Guilherme d’Oliveira Martins