A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

A publicação do primeiro volume das “Obras Completas” de Manuel Teixeira-Gomes (INCM, 2007) constitui um acto de serviço público que deve ser assinalado e saudado. Trata-se de uma iniciativa levada a cabo com os cuidados necessários da Imprensa Nacional, com prefácio de Urbano Tavares Rodrigues (o melhor conhecedor do autor e da sua obra) e notas deste e de Helena Carvalhão Buescu e Vítor Wladimiro Ferreira. Estamos perante uma edição de referência (que retoma e aprimora as últimas edições disponíveis) que deverá ter lugar obrigatório na rede de leitura pública e nas bibliotecas escolares. Como afirma Tavares Rodrigues: Teixeira-Gomes, “mergulhando no naturalismo e no decadentismo, recupera, ao mesmo tempo, as graças verbais de um Frei Manuel Bernardes, de um D. Francisco Manuel de Melo, e a elegância de Garrett, o domínio da língua de um Camilo Castelo Branco”. Este primeiro volume reúne “Inventário de Junho” (1899), “Cartas sem Moral Nenhuma” (1903) e “Agosto Azul” (1904).

A VIDA DOS LIVROS
De 18 a 24 de Agosto de 2008



A publicação do primeiro volume das “Obras Completas” de Manuel Teixeira-Gomes (INCM, 2007) constitui um acto de serviço público que deve ser assinalado e saudado. Trata-se de uma iniciativa levada a cabo com os cuidados necessários da Imprensa Nacional, com prefácio de Urbano Tavares Rodrigues (o melhor conhecedor do autor e da sua obra) e notas deste e de Helena Carvalhão Buescu e Vítor Wladimiro Ferreira. Estamos perante uma edição de referência (que retoma e aprimora as últimas edições disponíveis) que deverá ter lugar obrigatório na rede de leitura pública e nas bibliotecas escolares. Como afirma Tavares Rodrigues: Teixeira-Gomes, “mergulhando no naturalismo e no decadentismo, recupera, ao mesmo tempo, as graças verbais de um Frei Manuel Bernardes, de um D. Francisco Manuel de Melo, e a elegância de Garrett, o domínio da língua de um Camilo Castelo Branco”. Este primeiro volume reúne “Inventário de Junho” (1899), “Cartas sem Moral Nenhuma” (1903) e “Agosto Azul” (1904).



Retrato de M. Teixeira-Gomes, Marques d’Oliveira, óleo s. tela, 1881, Museu N. Soares dos Reis.


PERSONALIDADE POLIFACETADA
Manuel Teixeira-Gomes (1862-1941) nasceu em Portimão foi educado no colégio de S. Luís de Gonzaga e no seminário de Coimbra, no sentido de cursar Medicina, curso de que desistiu contra os intentos do pai. Vindo para Lisboa relacionou-se com Fialho de Almeida e João de Deus, e ainda com Gomes Leal e António Nobre. Apesar de não seguir o plano traçado pelo pai, este não deixa de o apoiar, o que permitirá ao jovem desenvolver e formar uma forte sensibilidade artística e literária. Tornou-se, assim, não apenas um fino cultor literário, mas um apreciador requintado das tendências artísticas, tornando-se amigo próximo de Columbano Bordalo Pinheiro. No Porto conheceu Sampaio Bruno e colaborou em “O Primeiro de Janeiro” e “Folha Nova”. Reconciliado com a família, viajou pela Europa, norte de África e Próximo Oriente, ligando a representação comercial da família ao desejo de conhecer o seu Mediterrâneo e a civilização. Enquanto tratava da colocação dos figos e das amêndoas de sua casa, descobriu as raízes do que mais amava – a arte, o culto da natureza, os sentimentos. “Viajar, sozinho. Nada que importune mais do que a opinião, a alegria, ou a tristeza, ou os caprichos daqueles de cuja existência devemos participar quando corremos mundo em busca de sensações ou de repouso. Lugares há até onde nos achamos de mais a nós mesmos; uma tarde, em certa alcova do Museu Platin, preciosa pelo arranjo antigo, genuíno, a minha própria imagem subitamente entrevista num espelho de Veneza irritou-me como se fora anacronismo irremediável que lhe estragasse a harmonia” (I.J.). Seguidor dos ideais republicanos, exerce o cargo de Embaixador em Londres, apresentando credenciais em Outubro de 1911 ao rei Jorge V. Como diplomata, mantém-se fiel à sua atitude de sempre, sereno, culto, intransigente no respeito dos seus princípios. Em 1923 é eleito Presidente da República, constituindo o seu mandato um dos mais fecundos desse período. É o tempo em que a “Seara Nova” é chamada ao governo e em que Álvaro de Castro lança as bases da recuperação económica, mas a perturbação política não pára e a instabilidade constitucional dita as suas leis, o que leva Teixeira-Gomes a renunciar ao mandato em Dezembro de 1925, para se dedicar exclusivamente à vida literária. Embarca no navio holandês “Zeus” com destino a Oran (Argélia), num exílio voluntário de que nunca regressará. Fixará residência em Bougie, Béjaia, na Argélia, lugar que recorda as paisagens marítimas do Algarve, no Mediterrâneo que amava e de que não podia prescindir. Norberto Lopes entrevistá-lo-ia, durante a ditadura, contra a qual se manteve inabalável, afirmando: “Pudera eu traçar-lhe o perfil que fosse digno da sua personalidade requintada, sóbria, simples como a de um grego do século de Péricles, magnânimo e brilhante como a de um príncipe florentino da Renascença”. Em 1941, morre e só em Outubro de 1950 o seu corpo regressará a Portugal, prestando-lhe os cidadãos de Portimão a homenagem possível nesses tempos, com a presença de suas duas filhas, Ana Rosa e Maria Manuela.

UM RARO PODER EVOCADOR
Ler Teixeira-Gomes é sentir com ele o mais intenso do que ele sente, e dê-se apenas o exemplo do Algarve que amava e cuja sensualidade soube evocar como ninguém: “Que lindíssima terra esta, exclamava eu, ainda na passagem da ponte, e o que temos nós a invejar à Sicília do Teócrito e mesmo ao panorama voluptuoso da Baía de Baías? E assim era que, naquele momento, a minha de ordinário tão embelezadora paisagem algarvia se idealizava, graças à magnificência do poente. O céu alaranjado  empanava-se de escumilhas doiradas com franjas de púrpura, e pelo cetim do rio corriam, leves, para a barra, as velas cor de açafrão, cruzando outras, brancas de cal e curvas, que cortavam o ar com o movimento sereno de asas livres no espaço” (CSMN). E o escritor, na noite fria de Silves, diz-nos ainda que “tudo rescendia à flor das amendoeiras, que branquejavam, juntas, no fundo dos vales, como um luar mais denso… e desse perfume se repassava o primeiro sono da minha viagem”. Sente-se o Algarve mais puro, do céu claríssimo e do perfume suave das flores de amendoeira… “Eu ia correndo o litoral algarvio, que é um ininterrompido jardim, muito povoado de gente e de arvoredo; as amendoeiras, agora, na realidade do Sol, atraíam de novo as minhas imagens, que nelas pousavam de envolta com as abelhas. Havia-as tão fechadas em flores que perdiam a sua forma de árvores que plagiavam formas fabulosas, ou ajoelhando, como anjos vestidos de arminho, ou tremendo dentro de imensos véus de noivas, ou arremetendo, de pé, à moda dos ursos brancos, ou correndo sobre os esgalhos curvos, – despropositados aranhiços de flores rosadas…”. Depois, “a pouco e pouco, as serras altas foram-se coando pelo azul do céu; as colinas nivelaram-se; por fim as árvores faltaram: a estrada rastejou, em lanços monótonos, na campina lavrada, como um risco de giz na ardósia limpa”. Sem grandes explicações, vemos o Sotavento a tornar-se diferente do Barlavento, por muito que se diga que a divisão é artificial ou erudita, basta a evocação, riquíssima de qualificativos, mas sem excessos (sentimos a influência do melhor Fialho). E, num remate, soberano, quando se anuncia o Guadiana, depois da pombalina Vila Real (“geométrica, tirada a cordel, bisonha”), o escritor dá-nos uma ideia afectuosa de fronteira: “onde o hálito do mar se sentia arrefecer, e à vista de Ayamonte, um leve aperto do coração dizia-me já que a saudade da paisagem familiar e amada começava ali…”. Que melhor poderia dizer-se, sem afectações e com um sentido ático, só possível num homem do Mediterrâneo, um algarvio paradigmático?

UM SENTIDO COSMOPOLITA 
Em Teixeira-Gomes sentimos como o algarvio se sente, naturalmente, cidadão do mundo. O mar aproxima, não o mar atlântico, ameaçador de bispos nigromantes, mas o Maré Nostrum, conhecido e acolhedor, e o norte de África representa uma diferença próxima. “Eu julgo que a realização perfeita da paisagem marítima grega, tal como os poetas da antiguidade a conceberam, está no troço da costa do Algarve, entre a Ponta do Altar e a Ponta da Piedade, isto é, desde a barra de Portimão até ao fecho da baía de Lagos”. Tudo está dito aqui… E o escritor da estirpe da Renascença não se satisfaz com o aquém-fronteiras, compara sempre com o que viu nas Sete Partidas e nunca deixa de gostar da sua terra como porta para o mundo. E, ao lermos as suas considerações, aqui marcadas pelo espírito do tempo, acolá serenadas pela sensibilidade artística (como nas páginas magistrais sobre música e pintura), sentimos o combate contra o fanatismo e a “plutocracia calculista”, do cidadão sonhando alterar a ordem estabelecida.
                                                  Guilherme d’Oliveira Martins 

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