A VIDA DOS LIVROS
De 30 de Junho a 6 de Julho de 2008.
“A Leitura Infinita – Bíblia e Interpretação” (Assírio e Alvim, 2008) de José Tolentino Mendonça é uma reunião de ensaios sobre teologia e exegese bíblicas que, longe de ser um conjunto hermético e dificilmente compreensível para o leitor comum, é uma agradável oportunidade para uma reflexão não apenas religiosa, mas também sobre as raízes da nossa civilização. Se é certo que há uma perigosa ignorância sobre a razão de ser de muitas atitudes e valores culturais ligados à sociedade e à história em que vivemos e de que somos fieis depositários, não é menos verdade que estamos confrontados com o desafio necessário e obrigatório de sabermos mais sobre de onde vimos e para onde vamos como sociedade e como cultura. E esta obra permite-nos tomar contacto com um manancial muito rico de elementos, servidos por uma escrita extraordinariamente clara e belíssima, que nos permitem saber muito do que devemos saber, muito para além da superficialidade com que tantas vezes somos servidos, em domínios tão sérios como estes…
TEMAS MUITO ATRAENTES
José Tolentino Mendonça fala-nos da Bíblia como deve ser referida, como uma inesgotável biblioteca, e não como um livro único – contra o qual Tomás de Aquino sempre alertou. Como afirmou William Blake, “A Bíblia é, de facto, o grande código da cultura ocidental”, e é confrangedor depararmos tantas e tantas vezes com a atrevida ignorância dos que encaram essa obra inesgotável como um livro fechado, ultrapassado ou piegas. “É um reservatório de histórias, um armário cheio de personagens, um teatro do natural e do sobrenatural, um fascinante laboratório de linguagens”. Ao longo da obra prevalece a ideia de que a Bíblia é um labirinto ou um caleidoscópio, em que se entra e se sai sempre com sensações e impressões diferentes. E porquê? Uma vez que, a cada passo, lemos, em vários tons e declinações, a essencial interrogação sobre a vida e os seus enigmas. Começamos, naturalmente, pelo elogio da leitura – que tem a palavra no início (“tanto a hermenêutica judia como a cristã construíram itinerários minuciosos para a leitura, que, repentinamente, prolifera, ganha sentidos, voos ínvios, desdobramentos”) e põe em relação permanente o sublime e o quotidiano. “Claro que na Bíblia abunda o sublime”, mas o realismo da vida comum torna esse sublime ordinário e quotidiano. E assim tudo se passa como se entrássemos num jardim, entre árvores frondosas e plantas frágeis, entre incompreensíveis arbustos silvestres e buxos muito bem cuidados pelas mãos sábias de jardineiros estetas, e procurássemos as pequenas identificações de cada uma das peças desse museu natural. Depressa verificaremos que estamos sempre entre o misterioso, o familiar e o desconhecido, entre o compreensível e o incompreensível, mas se estivermos despertos descobriremos muitas coisas extraordinárias, que poderão revelar-nos tal como somos. Trata-se, afinal, de “um livro sempre por ler” – e o “sentido da narrativa é o resultado de um processo, ou ‘drama de leitura’. O texto é um acontecimento vivido pelo leitor, mas o ‘drama da leitura’ não é um acto arbitrário ou ingénuo. Deve, por outro lado, respeitar as convenções que o próprio texto fornece. E, por outro lado, enquanto leitura narrativa, não elimina, antes convoca, o auxílio de outros métodos, sincrónicos e diacrónicos”. “Leitura infinita” não é, assim, um mero jogo de palavras, é um apelo permanente à diversidade, ao pluralismo, à abertura, aos enigmas. “A indeterminação suscita no interior do acto da leitura uma dinâmica que é de revelação e que é igualmente a Revelação”.
UM IMENSO VOCABULÁRIO
Foi Paul Claudel quem falou de um “imenso vocabulário” como identificador da Bíblia, no sentido de que aí poderemos procurar os significados incertos e improváveis dos vários enigmas que a vida nos vai revelando. Daí que o Livro se torne “perigoso”, uma vez que nos coloca perante o que somos, não como realidade idílica, mas como realidade complexa, onde Deus e o Diabo coexistem, para usar uma expressão tão cara a José Régio. E se nos lembrarmos do “clímax” da obra-prima de Carl Dreyer, “Ordet” (A Palavra) depressa descobrimos que a narrativa reserva-nos o inesperado e o insondável, num curso de acontecimentos em que a ironia se junta à tragédia (como em Evelyn Waugh), em que o sublime surge do vicioso (como em Graham Greene), em que o mundo visto às avessas se torna o mundo mais conforme com a humanidade (como em Chesterton ou Flannery O’Connor). E temos de ouvir Elias Canetti a dizer-nos (como se o menino judeu de outrora repetisse as histórias que se lembrava de ter ouvido em ladino): “É estranho! Diante do que hoje acontece, só a bíblia me parece ter uma força adequada. E é exactamente a sua terribilidade que nos consola”. Saber da humildade? T. S. Eliot fala dele como o única saber “no qual poderemos ter esperança” e Susan Sontag propõe em “erótica da cultura”, que “sirva o objecto literário, sem se substituir a ele”. E num tempo em que se vai esfumando no horizonte a memória da violência sem freios nem limites que se abateu sobre a humanidade no último século, quando nada o fazia prever, é a altura de recordar que o excesso de razão gerou a irracionalidade cega, e que o niilismo de Nietzsche deixou o enigma da violência sem chave e sem explicação. E René Girard põe o dedo na ferida ao falar de uma violência fundadora transferida simbolicamente para a transcendência, do mesmo modo que Michel de Certeau liga a violência a uma doença da linguagem, que esconde a ilusão e os perigos do efeito performativo da palavra, de que fala Austin.
ENTRE TACHOS E CAÇAROLAS
Os ensaios reunidos por José Tolentino Mendonça são todos acolhedores e inesgotáveis. E se dúvidas houvesse, bastaria invocarmos, depois de “Escondimento e Revelação”, onde sentimos o exercício da “paternidade de Deus” até às sombras do carvalho de Mambré e da árvore da cruz e de “Ars Amatoria” sobre as declinações do amor, “A Cozinha e a Mesa”. Partindo de Santa Teresa de Ávila, que dizia “entendei que até mesmo na cozinha, entre as caçarolas, anda o Senhor”, começamos por deparar com o cru e o cozido de Levi-Strauss, para seguirmos criteriosa e lentamente as preocupações culinárias da Bíblia como grande livro civilizacional. “Estes são os animais que podereis comer (diz o Deuteronómio): o boi, o cordeiro, a ovelha, a cabra, o veado, a corça, o gamo, o bode montês, o antílope e o búfalo. Podeis comer todos os quadrúpedes que tenha casco dividido em duas unhas distintas uma da outra e sejam ruminantes. Não comereis, porém, dos que ruminam mas não tenham a unha fendida, isto é, o camelo, a lebre, o coelho, porque ruminam, mas não têm a unha fendida. Estes serão impuros para vós. O porco porque tem a unha fendida, mas não rumina, será impuro para vós. Não comereis da carne destes animais nem tocareis no seu cadáver” (Dt 14, 4-8). Nesta passagem, tão densa, passa toda uma civilização. E poderíamos ainda falar de insectos como alimento, do mal que a gordura dos animais faz ou das virtudes do vinho, como “a vida para os homens”, mas também da importância do banquete e da mesa, como lugares de diálogo e de encontro, e ainda da abertura de Jesus ao convívio à volta da mesa como prefiguração do banquete celeste (“comer com todos, comer de tudo”; “a comensalidade como ideal da tradição bíblica”). E como esquecer o ciclo das colheitas? Em todos os calendários litúrgicos, o ano é marcado pelas três festas das estações: a Páscoa e os Ázimos na Primavera, a ceifa ou a festa das Semanas ou das sete semanas (Pentecostes) no Verão e a festa das colheitas ou dos Tabernáculos no equinócio do Outono. Em cada um desses momentos, os alimentos e os rituais são elementos chave. E assim poderemos entender melhor não só a hospitalidade e a sua força, mas também o facto de o cristianismo resultar da ligação dessas diferentes tradições e influências, por isso escolheu habitar entre (Roma e Jerusalém), “num mecanismo de integração que é um programa de universalismo”.
Guilherme d’Oliveira Martins
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