A VIDA DOS LIVROS
De 2 a 8 de Junho de 2008.
“Rituais de Apaziguamento – Escritos sobre Relações Internacionais” de Luís Moita (Universidade Autónoma de Lisboa, 2008) é um conjunto de textos que cobrem duas décadas, de 1985 a 2007, desde os tempos do CIDAC até à intervenção cívica e à vida académica mais recentes do autor. E há quatro domínios a considerar: “em busca de um sentido para a globalidade”, “as guerras já não se ganham?”, “notas dispersas” e “recuperar a memória dos anos oitenta”. E assim encontramos leituras da vida internacional por parte de quem reflecte sobre os acontecimentos fora da perspectiva resignada da correlação de forças ou da realpolitik, dando aos princípios um papel crucial.
UMA NOVA DIPLOMACIA – Permito-me destacar alguns textos emblemáticos. Antes do mais, sobre a ideia de uma “nova diplomacia”, que tem de ser entendida no contexto de uma evolução que parte da “razão de Estado” de Richelieu, segue pela adopção do moderno sistema dos Estados-nações da Paz de Vestefália (1648), explica a emergência dos embaixadores plenipotenciários, debruça-se sobre o conceito de soberania de Bodin e sobre as limitações desse conceito na transição do Antigo Regime para o constitucionalismo, lembra os pressupostos do Congresso de Viena (1815), assentes no equilíbrio dos poderes e numa legitimidade definida, invoca as novas preocupações multilaterais que culminam nas Conferências de Berlim (1884-85) e de Versalhes (1919-20), contrapõe democratização e secretismo, fala das diplomacias de guerra e no confronto entre os princípios de Wilson e o realismo dos Roosevelt… E deparamo-nos com o perfil clássico do embaixador: aristocrata, cosmopolita (Garrett, Chateaubriand, Saint-John Perse), com predominância jurídica e política, funcionando numa lógica bilateral. Já o embaixador moderno tem de estar atento à economia, ao multilateralismo, e à compreensão de novos actores, novos espaços, nova agenda, novos métodos, novos desafios. E se se fala de novos actores, temos a OMC, o G-8, os foros de Davos e de Porto Alegre, os novos think tanks e os lobbies. Quanto a novos espaços: há o surgimento dos novos regionalismos (EU, Mercosul, NAFTA…), numa perspectiva de “integração aberta”. Na nova agenda temos: o “softpower” (a cultura e a língua), a defesa do meio ambiente (Quioto), a segurança, a paz e a diplomacia económica (o petróleo, as energias alternativas). E, por fim, nos novos métodos refiram-se: o globalismo, a informação e o papel crescente das sociedades civis.
SOCIEDADES DE RISCO – Vivemos, como afirma Ulrich Beck, em “sociedades de risco”. De facto, o que distingue as sociedades contemporâneas das anteriores é não apenas a consciência das ameaças que pairam sobre nós, mas ainda a noção de que muitas delas têm origem em condutas humanas, em contraste com as ameaças naturais de todos os tempos. O potencial destruidor das armas nucleares, o risco de quebra dos equilíbrios dos eco-sistemas, a propagação das pandemias por contactos sexuais, a perda de confiança na cadeia alimentar, a disseminação das redes terroristas mostram que estamos ameaçados em virtude de procedimentos nossos. Daí que haja uma macro-ética planetária que importa considerar. José Luís L. Aranguren falava, assim, de uma “problematicidade dramática”, enquanto compreensão da relação entre ética e política ou, noutros termos, como realização da possibilidade de moralização da política de modo dramático. E esta compreensão significa a afirmação de uma compatibilidade árdua, sempre questionável, sempre problemática, do ético e do político. A vida moral surge, deste modo, como uma luta moral, tarefa sempre incompleta, com exigência de aperfeiçoamento, enquanto tensão entre a luta (agonia) e o exemplo. E Aranguren contrapõe a esta “problematicidade dramática” a recusa da ética em nome da política, a recusa da política em nome da ética e a impossibilidade trágica da compatibilidade entre as duas. Importaria, no entanto, usando expressões de Max Weber, superar a contraposição entre ética da convicção e ética da responsabilidade. E o autor propõe-nos a reflexão e a ultrapassagem dos dilemas que tal oposição implica.
VÁRIAS LEITURAS – É assim que, na procura de uma macro-ética planetária, seguimos diversos conceitos da modernidade – desde a “paz perpétua” de Kant (com todas as suas condicionantes), passando pela “justiça razoável” de John Rawls, pela “ética comunicativa” de Habermas, pela “justiça complexa” de Michael Walzer, pela “ética cidadã” de Dewey, pela “ética dialógica” ou pela “ética cordial” de Charles Taylor, de Adela Cortina ou de Monique Canto-Sperber. Perante uma “constelação pós-nacional” (Habermas) vemo-nos confrontados com a exigência de relacionar os vétices do triângulo de Miguel Reale (valores éticos, normas, factos) e de promover um diálogo efectivo entre religiões e culturas (Hans Küng), entre as lógicas contratuais e institucionais, para que os “rituais de apaziguamento” se tornem viáveis e com consequências positivas, alcançando o primado do Direito Internacional e a articulação ente valões éticos, razão, poder e força. Como afirma o autor: “A situação contemporânea mostra que a diversidade de culturas é compatível com um referencial de valores que tende para uma aceitação generalizada”. De que estamos a falar então? Do respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades cívico-políticas, antes de mais. Da opção pela sustentabilidade do desenvolvimento e pela satisfação das necessidades básicas das populações, em especial no combate contra a pobreza. Da tentativa de abolição da violência nas relações internacionais. Do controlo dos movimentos de especulação financeira internacional e da procura de equidade no comércio internacional (do “doux commerce” de Montesquieu ao “comércio justo”, reivindicado nos dias de hoje). Da assunção das opções inerentes à igualdade de género e ao companheirismo homem-mulher. Do respeito pelos equilíbrios nos eco-sistemas e no âmbito da biodiversidade. E ainda do acordo entre os cientistas e os poderes públicos para que trave a tendência para a clonagem de seres humanos… Não podemos falar das causas da paz e do desenvolvimento sem equacionar as questões ligadas a todos estes temas de civilização. O “choque das civilizações” preocupa-nos? É um risco sério? Sem dúvida que os problemas adensam-se no horizonte. Nesse sentido, temos de entender que o actual sistema de polaridades difusas com uma só super-potência aponta para muitas incertezas que temos de prevenir e antecipar.
QUE FUTURO? – O autor pergunta-nos: “Que nos reserva o futuro? A turbulência do presente aumenta o grau de incerteza. O imaginário do império tenderá a desaparecer ainda mais ou ressurgirá sob novas formas? Haverá um neo-imperialismo da super-potencia norte-americana? Ou assistiremos à deslocação para outras paragens do centro da economia-mundo? E para onde? De novo para a Europa? Para a Ásia e a amplitude da área do Pacífico? Essa eventual deslocação, significando uma disputa pela pilotagem do sistema mundial, provocará um conflito de envergadura? Ou todas estas categorias estão ultrapassadas e assistiremos antes à emergência da empresa-império capaz de gestão global? Qual o futuro da democracia em qualquer destes cenários? E em tudo isto, que espaço resta para a utopia e para a reconstrução humanizada de um ordenamento internacional distorcido?” Eis as perguntas que se nos colocam hoje, num contexto internacional de imprevisibilidade e de influências difusas e incertas. Daí a legitima dúvida sobre saber se “as guerras já não se ganham?”. Como afirma ainda Luís Moita, perante a espiral de violência, que se nota, por exemplo, no Iraque: «talvez se torne evidente que a lógica militarista, o culto de Marte e o ‘realismo’ de Hobbes estejam historicamente condenados, em nome de um edifício institucional e de uma agenda mundializada, no âmbito da ‘comunidade internacional’». Daí a importância dos “rituais de apaziguamento”, que apontam para a necessidade de pilotar o esforço para desmilitarizar as relações internacionais, o que constituirá, sem dúvida um claro avanço civilizacional.
Guilherme d’Oliveira Martins
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