A VIDA DOS LIVROS
de 18 a 24 de Novembro 2013
A última edição de «A Felicidade em Albert Camus», de Marcello Duarte Mathias (Rio de Janeiro, 1975; 3ª ed., D. Quixote, 2013) apresenta-nos na capa um jovem que sorri. Não estamos perante a imagem de alguém que transporta os males do mundo, mas de um homem que olha atento o tempo em que vive – perscrutando o absurdo da existência. A obra tornou-se profundamente atual, e invoca bem o escritor no ano do centenário.
UM JOVEM MARCANTE
Já cem anos… A imagem que temos de Albert Camus é a de alguém que partiu cedo, jovem, com apenas 46 anos, antes de nos ter legado a obra que dele esperaríamos. O tempo passou e a sua influência, longe de se ter desvanecido, cresceu e tornou-se um símbolo do tempo em que viveu – de grandes mudanças e escolhas dilacerantes: a emergência do singular, os existencialismos, a consideração do absurdo, num contexto de fim de uma guerra violenta e de queda do eurocentrismo e dos colonialismos. No dia 3 de janeiro de 1960, o potente Facel-Vega de Michel Gallimard despistou-se numa longa reta, perto de Montereau, embatendo contra um plátano. Albert Camus, que deveria ter viajado de comboio, teve morte imediata, o editor resistiria cinco dias. Tudo absurdo. Numa pasta de couro, estavam cento e quarenta e quatro páginas de «Le Premier Homme», romance incompleto que veria a luz do dia numa edição em 1994. Sete anos antes, Camus escrevera «L’Homme Revolté», que gerara uma tempestade nos meios intelectuais parisienses, por comparar a barbárie nazi e a lógica estalinista, o que conduziu ao corte de relações com Sartre e a uma violenta reação da revista «Les Temps Modernes». Em 1957, no auge do conflito argelino, depois de tentar uma via legalista (então impossível), no momento em que o Prémio Nobel reconhece a importância da sua obra, incendeia, de novo, o debate político ao dizer «creio na justiça, mas defenderia a minha mãe antes da justiça». Num tempo em que os nervos estão à flor da pele e em que o tema da independência e da autodeterminação estava na ordem do dia, a independência de Camus é por muitos interpretada como um desvio aos ideais da esquerda. E à pergunta se se considerava um intelectual de esquerda contrapõe: «Não estou certo de ser um intelectual. Quanto ao resto, sou pela esquerda, apesar de mim, e apesar dela». A obra de Marcello Duarte Mathias sobre Camus tornou-se profundamente atual. Limpos os circunstancialismos dramáticos de debates muito duros de vida ou de morte, podemos reencontrar Camus como alguém que compreendeu a história, recusando uma lógica de sistema. Como o autor português do magnífico ensaio recorda, Camus fez seu o grito de alma de Píndaro, colocando-o como epígrafe de «O Mito de Sísifo»: «Ó minha alma, não aspires à vida imortal mas esgota o campo do possível». De facto, como diz Marcello: «para lá das contingências históricas que o condicionam, todo o homem é uma liberdade em movimento, liberdade que se afirma e interroga ao serviço de uma ambição mais alta». Eis o centro desta reflexão. Eis a marca fundamental da personalidade de Albert Camus – engrandecer o homem e desdenhar o que o apouca e empobrece. E a decantação do tempo permitiu que essa liberdade se tenha projetado para além dos episódios momentâneos dessa hora já distante. Sendo certo que (como bem viu Raymond Aron) não estamos perante alguém que apenas foi clarividente. Não, Camus foi importante porque viu o que poderia ver, mesmo sem ver tudo, como sempre no-lo disse. Cometeu erros? Poderia ter dito mais? O certo, porém, é que teve as intuições fundamentais. Como referia o obituário do «The Times», Camus foi «a man who walked alone», e como tal soube definir o momento histórico singular em que viveu. Não por acaso, tanto Calígula como Sísifo são protagonistas únicos. E a felicidade, como o absurdo, são filhos da mesma terra, da relação entre o homem e o mundo e entre o mundo e os outros homens.
O TESTEMUNHO DE MOUNIER
Num ensaio luminoso, intitulado «Albert Camus ou l’appel des humiliès» (Esprit, jan. 1950), escrito pouco antes de morrer, Emmanuel Mounier procura compreender a originalidade do autor de «État de Siège». «O mundo nem é tão racional assim, nem irracional. É desrazoável, e nada mais que isso». Aqui estaria a raiz do absurdo – «como divórcio entre o espírito que deseja e o mundo que desilude, este espírito e este mundo estão confrontados um contra o outro sem poderem abraçar-se» (como se diz no «Mito»). O absurdo é o «pecado sem Deus». E Camus recusava o jogo de palavras de um suposto divórcio entre o homem e o mundo. Como diz Mounier a «vitalidade mediterrânica que bate no coração de Camus não pode tirar, do nada como espetáculo, o dever de agravar ainda mais a negação. Mesmo o absurdo quer mantê-lo em vida, não como absurdo, mas como algo de vivo». E, em convergência com o tema do ensaio de M.D.M., diz-se que «a abstração se opõe à felicidade». É esta recusa da abstração e do sistema (que nos aproxima de Kierkegaard) que torna os temas da felicidade e da vida decisivos. A felicidade passa além do heroísmo, levando-nos a uma «exigência generosa» (que encontramos em «A Peste» e nas «Cartas a um Amigo Alemão»). E o absurdo é o contrário da esperança. Mounier fala, por isso, de uma «esperança de desesperados», unindo os destinos de Malraux, Camus, Sartre e Bernanos. Para eles, a recusa não é uma renúncia, como um não de método, mas um sim à vida. E a felicidade é a maior das conquistas contra o destino que nos é imposto… É a vida que está em causa. E foi isso que perturbou os bem pensantes quando Camus invocou o exemplo da sua mãe, exposta ao drama da violência. Calígula organiza a indiferença. Mas nem tudo é permitido. A vontade incessante e obstinada do homem é que decide o absurdo. A Prometeu, herói da superação, Camus contrapõe Sísifo, herói da incessante repetição. Impõe-se compreender os limites: escolher a história contra o eterno, a ação contra a contemplação, o presente contra a abstração, «escolher uma vida inteiramente votada à dispersão». O que tem sentido para Camus? Não é um sentido superior, mas um sentido «le monde a du moins la verité de l’homme». Tolstoi como Camus (segundo Mounier) consideram como raiz do mal a cedência à autoridade de uma abstração, estatista ou teocrática (Magris falou-nos da idolatria). Daí a importância dos limites. Anos passados, M.D.M sabe que as considerações que apôs no final da sua reflexão confirmaram, de pleno, a indiscutível influência de Camus, o caráter premonitório das suas considerações e, sobretudo, a abertura de horizontes no sentido dos limites e da imperfeição. «Camus possuía uma profunda, uma tenaz esperança nas virtualidades redentoras do homem. Essa esperança apontava um caminho e constituía, já de per si, uma promessa de plenitude que o levava a naturalmente imaginar Sísifo feliz – pois não renova Sísifo todos os dias, perante todos e sem desfalecimentos, a liberdade do seu sonho? Isolado decerto, mas solidário dos outros na procura e conquista da felicidade. E é isso o que afinal importa».
Guilherme d’Oliveira Martins