A VIDA DOS LIVROS
De 26 de Maio a 1 de Junho de 2008.
“Eduardo Lourenço e a Cultura Portuguesa (1949-1997)” da autoria de Miguel Real (Quidnovi) foi lançado no dia de anos do autor de “Labirinto da Saudade” e de “Portugal como Destino” e constitui uma excelente oportunidade para recordarmos um percurso intelectual complexo e para reflectirmos sobre a sua influência na nossa cultura. E o certo é que importa ler Eduardo Lourenço, aceitando os seus desafios exigentes, seguindo o seu percurso heterodoxo e aprendendo a entender melhor Portugal como identidade difícil e heterogénea.
QUATRO QUESTÕES.
Antes do mais, Miguel Real analisa a obra de Eduardo Lourenço desde a “Heterodoxia – I” (1949) até 1997, deixando para ulterior consideração a fase iniciada com “Portugal como Destino”, obra fundamental de actualização de “Labirinto da Saudade”. E deparamo-nos com quatro questões referenciais – cultural, política, estética e filosófica. A propósito de cada uma delas, seguimos o percurso intelectual do ensaísta. Logo, em 1949, aparece-nos a exigência da Europa, símbolo do diálogo que então nos faltava, entendendo o ensaísta o nosso continente como lugar da “inquietação universal” – e a esse propósito Lourenço invoca António Sérgio e a geração da “Presença” como exemplos de uma atenção necessária a essa abertura de espírito. E, se é certo que as ideias de que o homem europeu perdeu o sentido do próprio sentido, de “esgotamento da civilização ocidental” e a emergência de conceitos negativos como desespero, absurdo, angústia, náusea e nada, bebidas em Nietzsche, germinam e se desenvolvem, a verdade é que só a Europa é que poderia trazer o inconformismo necessário ao progresso das ideias. Daí a recusa do “irrealismo histórico” definidor multissecular do ser português. Aristóteles afirma: “Ninguém pode atingir adequadamente a verdade, nem falhá-la completamente”. A “heterodoxia” surge, assim, com uma atitude de demarcação e de afirmação. Demarcação dos dogmatismos religiosos e políticos e afirmação de um caminho no sentido “da exigência suprema do coração e da inteligência” – “afirmação de um espaço ontológico, de um intervalo irredutível entre nós e a Verdade que nos falta”, pois “se é certo que a Verdade nos falta, mais certo é ainda que somos nós quem falta à Verdade” (como dirá em 1960, no tentado segundo prólogo sobre o espírito de heterodoxia). Afinal é “a Verdade como presença eternamente ausente” a “experiência de fogo onde um espírito heterodoxo queima a inteligência e as mãos”. E o que repugna ao heterodoxo não é a convicção das ortodoxias, mas “a facilidade com que os seus cultores a crêem manejar”, degradando-a e rebaixando-a. Assim, “no horizonte de todas as Antropologias, mesmo as mais sublimes, como a da Suma Teológica é o nosso Nada quem se multiplica para se sentar no lugar vazio da Verdade. Mas o mesmo S. Tomás, aquele que ‘falou bem de Deus’, soube isso como ninguém, distinguindo a ‘palha’ luminosa dos seus silogismos, do grão celeste que eles circunscreveram deixando-o intacto. Por esta última negação tanto quanto em nós cabe medirmo-nos com ela, é que nós concebemos a Verdade descendo do seu trono para nos dar a mão”.
PENSAMENTO IMPURO
A “maravilhosa imperfeição” é algo que intimamente se liga à “heterodoxia”, e isso tem consequências políticas, desde logo pela afirmação (apesar das desconfianças da oposição dominante) de uma democracia pluralista e parlamentar. Democracia e liberdade são incindíveis para o escritor. Em “A nova República deve nascer adulta” di-lo-á perante o sobrolho carregado de gregos e troianos. A censura proíbe e os do contra apenas toleram. Mas mais, Eduardo Lourenço assume com nitidez um discurso anti-colonialista (na linha de “L’Eveil de l’Afrique Noire” de Mounier), nem sempre bem entendido, ora por questões tácticas ora por visão fechada. E se a “heterodoxia” suscitava distância e isolamento a verdade é que tal aconteceria antes e depois de 1974. Basta lembrarmo-nos da acusação de heresia por defender um “socialismo impuro”, à qual respondeu afirmativamente, para surpresa de muitos. O discípulo de Joaquim de Carvalho, de Sílvio Lima e de António Sérgio, o ensaísta, o esteta, o escritor de estilo atraente e inconfundível, deu, no entanto, sempre o privilégio à poesia e à literatura. A impureza significava, assim, a consequência do reconhecimento da criação artística. “A obra poética a única realidade absoluta”. Não podemos esquecer a influência do “Orpheu” e da “Presença” e o célebre texto (tão incompreendido) sobre “a contra-revolução do modernismo português”, de 1960, que ganhou um ponto de interrogação, depois de um esclarecimento de Adolfo Casais Monteiro). Afinal, houve quem confundisse o juízo cultural com um juízo político. Miguel Real vê bem, nos anos cinquenta, a projecção do espírito heterodoxo na poesia (António Ramos Rosa, Egito Gonçalves, Jorge de Sena, Eugénio de Andrade, Sophia de Mello Breyner) e no romance (Vergílio Ferreira, Agustina Bessa-Luís, David Mourão-Ferreira, José Cardoso Pires, Maria Velho da Costa e Almeida Faria).
A SOMBRA DE MONTAIGNE.
Não podemos entender o pensamento de Eduardo Lourenço sem atendermos ao magistério luminoso de Joaquim de Carvalho (um guia intelectual indiscutível, que nos leva até à fenomenologia moderna) e à influência decisiva do método ensaístico de Michel de Montaigne. E aqui espreitam, sem dúvidas, António Sérgio e Sílvio Lima, com este último a dizer no seu insuperado “Ensaio sobre a Essência do Ensaio” (1944): “Cada escritor se julga no direito de rotular de ensaios ou de ensaio os seus produtos. Como se o ensaio fosse, afinal, a fumarenta retórica, o eruditismo formalista, o historicismo arquivístico, o comentarismo estéril, o barroquismo conceptista e cultista, numa só palavra, o anticriticismo. O facto assume entre nós, lusos, um aspecto mental inquietante”. E Sérgio dirá deste mesmo texto ser “a obra mais lúcida e de maior acerto acerca da natureza da literatura ensaística em Portugal”. O ensaio precisa, no fundo, de apontar vias novas, de estimular o pensamento, de intuir, de propor, de usar a broca da análise e da crítica. Sabendo isto, melhor que ninguém, filosoficamente, Eduardo Lourenço parte de cinco referências que estão presentes na primeira “Heterodoxia” – Leibniz, Kant, Hegel, Kierkegaard e Nietzsche. E é no pensador dinamarquês que o ensaísta vai buscar o tema da “instauração subjectiva da verdade”, que abrirá portas para os temas existencialistas (de Camus, Sartre e Merleau-Ponty) do “nada ontológico dominante”, do “sentimento de queda” e de “ausência”, para não falar do unamuniano “sentimento trágico da vida” (enriquecido com o vitalismo de Ortega).
ESTRELA DE NOVE PONTAS.
Miguel Real situa o pensamento de Lourenço no contexto do que designa pelas nove referências do universo cultural e filosófico português, a saber: a afirmação neo-realista (em que o católico descobre uma outra visão da justiça social universal na geração da revista “Vértice”); o contacto como o pensamento marxista (com Magalhães-Vilhena), de que se demarca por recusa de determinismos; a influência racionalista, de Sérgio e de Joaquim de Carvalho, que vai ser caldeada por Leibniz e pelo contraponto de Kierkegaard; o distanciamento do espiritualismo da “Filosofia Portuguesa”; a influência do legado da “Presença” (de Régio e Casais-Monteiro) que leva ao modernismo do Orpheu e à decisiva marca de Sá-Carneiro e de Pessoa; a emergência do “sobre-realismo” (Mário Cesariny), que Lourenço considera como sucessor da aventura ontológica e da ilimitada liberdade poética do Orpheu; a não aceitação do “labirinto de Pascoais”, sem deixar de reconhecer a sua força poética, como sinónimo de um nacionalismo encastelado em si mesmo; a recusa do “irrealismo prodigioso” do Estado Novo e, por fim, a afirmação existencialista de uma “heterodoxia” marcada pelo “pensar sentindo e sentir pensando”, referência-chave, que o ensaísta retomará sempre, designadamente ao repensar a Europa e as suas “duas razões”.
E oiça aqui as minhas sugestões na Renascença.
Guilherme d’Oliveira Martins