A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

Rob Riemen, ensaísta e filósofo, fundador e diretor do Instituto holandês Nexus, ao escrever sobre a «Nobreza de Espírito – Um Ideal Esquecido» (Bizâncio, 2011) fala-nos, de um modo aberto e esclarecedor, da relação entre cultura e liberdade, dando ênfase à obra de Thomas Mann.

A VIDA DOS LIVROS
de 23 a 29 de Setembro 2013


Rob Riemen, ensaísta e filósofo, fundador e diretor do Instituto holandês Nexus, ao escrever sobre a «Nobreza de Espírito – Um Ideal Esquecido» (Bizâncio, 2011) fala-nos, de um modo aberto e esclarecedor, da relação entre cultura e liberdade, dando ênfase à obra de Thomas Mann.



PRUDÊNCIA E PONDERAÇÃO
A prudência exige a ponderação do que temos e do que pretendemos. E o mundo da vida tem de entender que o valor não se confunde com o preço. Em momentos de crise temos, assim, de encontrar forças capazes de favorecer a criatividade e a capacidade de construir. Rob Riemen procura descobrir na história recente elementos que relacionem as tragédias do século XX, de guerras e genocídios, com a procura de caminhos de desenvolvimento humano. Temos de aprender com a experiência humana, recusando a falta de memória e o ressentimento. Poucos compreenderam, por exemplo, Keynes quando este disse que deveríamos aspirar a que a economia pudesse viajar no banco de trás (cf. «Visão», 22.8.13). No entanto, o que o mestre de Cambridge afirmou não pode confundir-se com o desvalorizar da satisfação das necessidades ou do combate das crises, mas significa que a vida precisa de encarar com naturalidade e temperança a sua relação com os recursos disponíveis e as respetivas condicionantes. É a vida que está em causa, mais do que qualquer obsessão de encontrar culpados pelos males passados ou do que procurar um modelo virtuoso ou perfeito, como um fim em si. Como tem repetido Eduardo Lourenço, apesar da nossa ciclotimia, que alterna momentos de euforia e de depressão, oscilando entre considerarmo-nos os melhores do mundo ou pensarmo-nos os piores, temos de tomar consciência de que não somos nem melhores nem piores do que outros, e de que se tantas vezes nos conseguimos superar no passado foi porque aceitámos a imperfeição, que, como desafio, o ensaísta designa como maravilhosa. Alexandre Herculano falou, por isso, de vontade de existir e de persistir, e isso explicará muitos séculos de uma nação antiga, com as fronteiras mais duradouras e vetustas. Numa palavra, a vida é que deve animar a economia. E se a disciplina é fundamental, é porque a sobriedade é uma qualidade necessária do «homo economicus», como pessoa livre e responsável.


O ALERTA DE THOMAS MANN
A cultura pode estar a ser destruída por um novo culto – alertava Thomas Mann. «A bildung, a formação moral e espiritual do ser humano, já não pode existir…». Do que se trata é de cair na tentação de mergulhar a sociedade numa euforia coletiva, que alimenta os demagogos, libertando ilusoriamente os cidadãos da responsabilidade individual. O drama vivido pelo romancista alemão começou no patriotismo da primeira guerra mundial, que o levou a temer pelo fim do sentido da cultura alemã em «Reflexões de um Homem Apolítico», julgando que a guerra era um problema não de poder mas de preservação de forças espirituais, e continuou na defesa de um humanismo, capaz de integrar o erro e a imperfeição. Durante a primeira guerra, Thomas Mann foi severamente criticado pelo seu irmão Heinrich, por esquecer algo de essencial. Mas o tempo passou. A tragédia europeia mudou tudo – e Thomas passou a ter outra ideia. Ao lermos «A Montanha Mágica» (1924), que começou por querer ser um romance irónico, encontramos o diálogo que encerra o enigma de um continente em chamas, mas, mais do que isso, que procura responder ao mistério da existência humana. Hans Castorp apresenta-nos o cenário iniciático da montanha e do sanatório. Lodovico Settembrini representa o Iluminismo, acreditando na bondade humana e na omnipotência da razão e na força das artes como apelo à bondade. Leo Naphta, pelo contrário, assume o lado negro da humanidade, e espera que o bem-estar venha da obediência absoluta e da violência. Mynheer Peeperkorn procura falar da vida e das coisas comuns, mas falta-lhe determinação e acaba por pôr termo à vida. Lembrando Goethe, Mann pergunta-se sobre o que é a verdade. «Todas as leis e regras convencionais podem ser vistas como remontando a uma única coisa: a verdade». E que é a liberdade? «Consiste não em recusar reconhecer qualquer coisa acima de nós, mas em reverenciar algo que está acima de nós». Perante a tentação da euforia do imediato, Mann propõe uma visão humanista do mundo e da vida. E o exemplo de José do Egito, filho de Jacob e Raquel, surge como personalização do que designará como medida e valor, enquanto descoberta da dignidade. A verdade não é um conceito empírico ou matemático, não é a realidade. De facto, a verdade é medida e valor, isto é, o ideal a que cada ser humano deve aspirar. Não é um conceito subjetivo, relativo, com que se lida no bel-prazer de cada um. É um padrão pelo qual a dignidade humana deve ser aferida. Por isso, aniquilar a cultura é pôr em causa a verdade – e destruir a verdade é privar a pessoa humana da sua dignidade.


CONTRA A MEDIOCRIDADE
A mediocridade constitui, assim, a aceitação e a cedência perante o esquecimento da cultura. Por isso, para Thomas Mann, como para Riemen, aristocracia e democracia não são opostos. António Alçada Batista falava muitas vezes da «aristocracia do comportamento». E que queria dizer? Falava do respeito mútuo, da inteireza, da coragem e da proximidade. Segundo Mann, a aristocracia significaria «liderança dos melhores». Ora, a democracia, aceitando por definição a imperfeição, tem de desejar atrair os melhores, em nome do reconhecimento da importância dos limites. Que é a inteligência senão o reconhecimento dos limites? Eis por que razão temos de criar condições para atrair os melhores à coisa pública. «Numa democracia que não respeita a vida intelectual, nem é guiada por ela, a demagogia tem rédea livre, e o nível da vida nacional é rebaixado ao ignorante e ao inculto. Mas tal não acontece se o princípio da educação puder dominar…». Thomas Mann di-lo em 1938 no texto «A Próxima Vitória da Democracia» e hoje podemos compreender esse apelo contra a indiferença, capaz de ligar liberdade, verdade e dignidade. E a coisa pública tem de assentar na ideia de que a pessoa é verdadeiramente justa não por querer parecer boa, mas por sê-lo. Deste modo, Rob Riemen fala de «nobreza de espírito» como pedra angular de um mundo civilizado. Pela nobreza de espírito é que a cultura pode afirmar-se como realidade multifacetada – criadora e construtora. A procura da melhor sociedade obriga a abordar a busca da verdade, mas não a tentação de nos julgarmos possuidores dela. «Não sabemos o suficiente para ser intolerantes», dizia Karl Popper. Os exemplos de Espinosa, Goethe e Thomas Mann permitem entender a nobreza de espírito como culto simultâneo da verdade e da liberdade. Não se trata do domínio da virtude de Saint Just, que levou ao terror, mas do equilíbrio necessário entre a exigência e a compreensão do erro. «As forças agora alinhadas contra os valores humanísticos são múltiplas» – lembra George Steiner. Daí a necessidade de acreditar no poder das convicções e da responsabilidade para restaurar os valores da dignidade humana.     


Guilherme d’Oliveira Martins

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