A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

João de Deus Ramos, na sua obra «Portugal e a Ásia Oriental» (Fundação Oriente, 2012) reúne um significativo acervo de estudos e comunicações que nos permitem compreender melhor a relação de diálogo entre as culturas da China e de Portugal. Obedecendo a critérios de rigor histórico, o autor articula os factos e os conhecimentos com uma sensibilidade especial relativamente à contemporaneidade e aos desafios futuros colocados por este intercâmbio civilizacional. Trata-se, pois de uma obra de leitura indispensável, sobretudo num momento em que o CNC visita o Grande Império do Meio.

A VIDA DOS LIVROS
de 9 a 15 de Setembro de 2013


João de Deus Ramos, na sua obra «Portugal e a Ásia Oriental» (Fundação Oriente, 2012) reúne um significativo acervo de estudos e comunicações que nos permitem compreender melhor a relação de diálogo entre as culturas da China e de Portugal. Obedecendo a critérios de rigor histórico, o autor articula os factos e os conhecimentos com uma sensibilidade especial relativamente à contemporaneidade e aos desafios futuros colocados por este intercâmbio civilizacional. Trata-se, pois de uma obra de leitura indispensável, sobretudo num momento em que o CNC visita o Grande Império do Meio.


 


DIÁLOGO E COMPLEMENTARIDADE
A história da globalização reserva-nos casos diversos, que merecem uma atenção especial, sobretudo pela necessidade de compreendermos o significado atual do diálogo e da complementaridade entre diferentes culturas. Lembremo-nos do fascínio causado na Europa pelas civilizações orientais, e em especial pelo antigo Império do Meio. Se lermos o «Tratado das Cousas da China» de Frei Gaspar da Cruz (1569) facilmente entendemos a atração por essa importante Nação da Ásia: «os Chinas a todos excedem em multidão de gente, em grandeza de reino, em excelência de polícia e de governo, e em abundância de possessões e riquezas». O certo é que encontramos uma imagem positiva e favorável do lado português, que contrasta, nos primeiros contactos, com alguma desconfiança e temor do lado oriental. É natural esta assimetria, sobretudo considerando que a China tem uma história muito antiga e uma tradição de distância e de proteção… Para a evolução riquíssima, em contactos e na relação recíproca, contribuíram os missionários europeus jesuítas, chegados à China nos séculos XVI e XVII, coordenados pelo italiano Matteo Ricci (1552-1610), discípulo de Cristóvão Clavius, o mais importante astrónomo do seu tempo, responsável pela reforma do calendário moderno. Francisco Xavier tinha morrido em 1552, na pequena ilha de Sanchoão, à vista do Império do Meio. Ricci chegou ao Oriente em 1582, após longa viagem iniciada em Lisboa – com chegada ao entreposto de Macau, tendo logo começado a estudar a língua e os costumes locais e estabelecendo importantes contactos com a nobreza e a intelectualidade. No ano seguinte, o Padre Matteo foi estabelecer-se na Província de Guangdong e, em 1589, vemo-lo em contacto estreito com estudiosos confucionistas, ensinando-lhes astronomia, matemática e geografia. Já em janeiro de 1601, estabelece-se na cidade de Pequim, onde publica «Os Seis Primeiros de Euclides», sendo desse tempo uma colaboração muito intensa entre missionários, letrados e académicos chineses.


A VISITA DO IMPERADOR KANGXI
Esta relação, de intenso intercâmbio, culminaria na assinatura do Édito da Tolerância (1692). Mas antes temos de lembrar o episódio da visita do Imperador Kangxi (1654-1722) à casa dos jesuítas, em 1675, altura em que escreveu o aforismo «Jing Tian», em sinal expresso de aproximação. Segundo a descrição do Padre Gabriel de Magalhães: «com aquele tão afável e honroso recado quis suprir o grande amor e afeto (…) tinha faltado». O embaixador João de Deus Ramos, em «Portugal e a Ásia Oriental» (Fundação Oriente, 2012), dá-nos uma esclarecedora síntese sobre esse episódio e o seu significado. O imperador escreveu então dois caracteres cuja leitura poderia ser feita de acordo com a mensagem cristã, sem abdicar da tradição chinesa. «Jing Tian» significava «reverenciar o céu», o que poderia para alguns não se referir ao Deus dos cristãos, já que o Imperador, ele próprio, era designado como «Filho do Céu». Apesar da ambiguidade ou do equívoco, o certo é que o gesto do Imperador teve a maior importância. Infelizmente, o desenvolvimento da chamada «questão dos ritos» levou à condenação da atitude dos jesuítas de abertura aos costumes locais, à rutura com as autoridades e à expulsão dos cristãos (1724). Note-se que os missionários comportavam-se como chineses, estudavam o pensamento de Confúcio e conheciam bem a literatura e a filosofia orientais. Entretanto, no domínio científico, «os jesuítas haviam observado a incapacidade para prever corretamente a ocorrência de eclipses, bem como para resolver a relação entre os calendários solar e lunar». A matemática e a astronomia tornaram-se decisivas. Os pedidos para Roma eram persistentes: João Rodrigues, de Cantão, pede: «Mandem-nos livros de matemática em grande quantidade». Ricci solicita apoio a Galileu e o Padre Longobardo insiste: «Mandem-nos matemáticos». E a verdade é que os pedidos foram atendidos, e vários matemáticos e astrónomos europeus foram para o Império – estabelecendo-se em Pequim, penetrando na Cidade Proibida e convivendo com os mandarins e dignitários da corte. É o momento em que o Padre Matteo Ricci passa a ser tratado como «Hsi-ju» – que significa «homem sábio do Ocidente». O seu contributo para a correção do calendário chinês é decisivo – uma vez que antes estava baseado nos ciclos lunares, tendo-se afastado dos ciclos das estações anuais. E o certo é que a medida do tempo era fundamental para o Império, já que era um instrumento de uniformização da vida civil, de coleta dos impostos e de organização das colheitas. No entanto, em alguns aspetos a astronomia ocidental estava mais atrasada do que a chinesa em aspetos cosmológicos. Por exemplo, os chineses entendiam que as estrelas não estão cravadas numa esfera, situando-as no espaço interestelar, não havendo dez esferas (como Camões descreve), onde os corpos celestes se moveriam, nem ar entre planetas e estrelas. Os experimentados astrólogos chineses tinham detetado ocorrências nas estrelas, nomeadamente a explosão em supernova de 1054, enquanto os ocidentais estavam equivocados sobre a imutabilidade dos céus.


UM INTERCÂMBIO ENTRE MATEMÁTICOS
Os astrónomos do Império faziam observação sistemática dos fenómenos celestes. Cinco matemáticos olhavam o firmamento durante a noite, de modo a que nada lhes passasse despercebido – um fixava-se no zénite e os restantes nos quatro pontos cardeais. Quando os padres jesuítas lhes ofereceram telescópios contribuíram para melhorar as suas observações, inclusive sobre as fases de Vénus, os satélites de Júpiter e a estranha forma de Saturno. Assim se compreende a grande influência que os jesuítas ganharam na corte do Imperador, tendo sido encarregados de reconstruir e equipar o Observatório de Pequim com esferas celestes, quadrantes metálicos e telescópios avançados, tornando-o o mais moderno do seu tempo. Assim, mesmo depois do édito de 1724, que expulsou os cristãos, os jesuítas foram autorizados a residir em Pequim e continuaram a ocupar lugares de relevo na hierarquia científica da corte – integrando o Tribunal Astronómico (Observatório) e o Tribunal das Matemáticas (organismo encarregado da matemática, geografia e cartografia) Em 1724, o Padre André Pereira (1689-1743), natural do Porto, tornou-se astrónomo e matemático da corte e foi promovido pelo Imperador a vice-presidente do Tribunal Astronómico. Também o Padre José de Espinha (1722-1788), natural de Lamego, foi elevado à dignidade de Mandarim, como presidente da mesma instituição. E segundo a historiografia conhecida, é de admitir que os padres de Pequim tenham ajudado a manter a situação de Macau. Em 1622, a cidade foi cercada por terra e mar pelas forças do Governador de Cantão e os padres da corte fizeram diligências coroadas de êxito para manter o «modus vivendi» de Macau. Estamos, assim, perante um notável e premonitório exemplo de cooperação cultural e científica, que hoje merece ser recordado como sinal de futuro.


Guilherme d’Oliveira Martins

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