A VIDA DOS LIVROS
de 26 de Agosto a 1 de Setembro de 2013
Em memória de Urbano Tavares Rodrigues, lembramos hoje o algarvio «Agosto Azul» (1904) de Manuel Teixeira Gomes, um dos grandes escritores da nossa língua, que o romancista agora desaparecido tão bem estudou, dando-nos a possibilidade de conhecer melhor o nosso sul. «Eu era novo então, forte, petulante, fulgurando a miúdo em súbitas exultações, na plena fase de herói, orgulhoso, dominando a vida e gastando-a com fausto, perdulário sibarita que a sorvia, sorrindo, nas aparências luxuriantes e a sugava até à essência saborosa ou amarga…». Recordamos também a «Corografia do Reino do Algarve», escrita no século XVI por Frei João de S. José.
REINO DE NOVIDADES
Quem ler a «Corografia do Reino do Algarve» de Frei João de São José (1577) facilmente se aperceberá de que os algarvios eram vistos como gente estranha, como se povoassem lugares distantes e excêntricos. Reino de novidades, era o que o surpreendido frade encontrava neste sudoeste cheio de contrastes, que leva o nome do ocidente do Al-Andalus. E que costumes bizarros e distantes eram estes? «Quem em Portugal ou em outra qualquer parte do mundo ouve dizer que no Algarve se vareja o figo e não a azeitona e que num figueiral, andando continuamente quinze, vinte pessoas, não pode tanto apanhar que mais não madureça té se acabar, e que os figos se tocam com uns bichinhos que nascem e saem d’outros e os que assi não são tocados pequenos pecam e caem, e que o azeite o faz cada um em sua casa, pisando a azeitona com os pés, e que as uvas para o vinho ser bom, depois de vindimadas as deitam em terra, em monte, e as deixam apodrecer e depois o faz cada um em sua casa com um saco, qualquer cousa destas per si traz consigo admiração, a quem delas não tem experiência e devem ser contadas com resguardo, quando mais todas elas justas». De facto, até há bem pouco, o Algarve era algo de estranho para o resto do país. E se esta descrição tem mais de quatro séculos, o certo é que fui testemunha de tudo isto – a começar na proibição absoluta, pela minha avó, de mexermos nos figos toques e na misteriosa intervenção dos pequenos mosquitos que davam vida e sabor aos melhores figos. Tudo era ainda como Frei João diz: o varejo e a secagem dos figos, o tratamento do azeite e o ciclo das uvas, douradas, dulcíssimas, e depois de manjar dos deuses passas ou vinho… Afinal, o reino era diferente e foi-se criando esse mito, com aura de lenda, de mouras encantadas e de contos fantásticos, cheio de exotismo e mistério, alimentado pela tradição das taifas.
O SABOR DA TERRA
Sigo um livro magnífico, com fotografias belíssimas. Falo só do capítulo sobre o Algarve, mas a obra toda é indispensável: «Portugal – O Sabor da Terra – Um Relato histórico e geográfico por regiões» de José Mattoso e Suzanne Daveau, com as imagens de Duarte Belo (Temas e Debates / Círculo de Leitores, 1ª ed., 2010). É obrigatório ler, em complemento de Orlando Ribeiro. No Algarve, a distância e o mistério vêm da dificuldade no acesso. Era duro e perigoso passar a serra. Durante o Inverno as veredas tornavam-se intransitáveis e nem os carros de besta podiam passar. Por terra, só era possível ir-se a cavalo por Messines e S. Marcos da Serra. As melhores comunicações faziam-se por mar, ao longo da costa atlântica ou através do Guadiana, a partir de Mértola. Teixeira Gomes descreveu o périplo de caminho-de-ferro até Beja e depois a chegada a Mértola e seguir rio abaixo até Vila Real de Santo António e depois pela costa até Vila Nova de Portimão. O comboio só chegou a Faro em 1889 e a Vila Real em 1906 – e a Lagos só no início dos anos vinte. Lembro-me de viagens épicas no comboio, a começar ou a acabar na Estação de Sul e Sueste, a todas as horas do dia e da noite, com transbordos, atrasos, esperas, noites de vela no «correio» e tudo o mais – sempre com a compreensão de meu avô, que era um apaixonado desse meio de transporte. Pela estrada de Duarte Pacheco, havia trezentas e muitas curvas na serra do Caldeirão até Loulé, que conhecíamos de cor, graças a olímpicos enjoos. Frei João de São José comparou a serra a um mar «muito empolado, com grande tormenta». Daí as dificuldades de povoamento. Muito poucos nobres transferiram residência para ali. O Algarve era como uma ilha, sendo precisos privilégios foraleiros para atrair gente do norte e Alentejo para os trabalhos agrícolas. Só o rei D. João II morreu no Algarve. Ceuta atraiu os portugueses, mas a conquista não trouxe as riquezas esperadas – mesmo assim os procuradores do Algarve sempre defenderam essa presença, sobretudo aquando da prisão de D. Fernando. A antiga cidade de Silves, a Bagdad do ocidente, cabeça do reino antigo, foi perdendo influência, pelo assoreamento do rio Arade. A sede episcopal e o centro político passaram para Faro. Depois, a economia algarvia abriu-se ao exterior, procurando superar a falta de trigo. No mar, havia o atum e a sardinha. Em terra, o figo foi a principal produção da região. A colheita ia do fim de junho até setembro, com uma grande variedade de espécies e de formas de conservação e de secagem. «Muitos rendeiros e proprietários transferiam temporariamente as suas residências para as casas ou acomodações que possuíam nos figueirais», numa tradição muçulmana ancestral conhecida como «alacil» (ou mesa de Deus).
OS LAVORES DO FIGO
Fazia-se tudo do figo, como notava Frei João: «queijos destes figos, lavrados com amêndoas e festejados com mil lavores por cima e outras mil invenções de figuras, que estas mulheres cada dia inventam…». Nestes lavores do figo está a origem da doçaria algarvia… E havia o sequeiro e os seus manjares e ingredientes: amêndoas, passas de uva, azeitonas, alfarrobas. Vitorino Nemésio fala de «praia e pomar» e a variedade é fantástica: limões, laranjas (agras e doces), peras, maçãs, nozes, avelãs, pêssegos, marmelos, ameixas, abrunhos, castanhas e até cerejas de Monchique. E na praia, havia abundância: linguados, rascassos, pâmpanos, rodovalhos, ostras, amêijoas, lagostas e lavagantes. E havia que proteger as armações e os povos dos corsários e piratas de Marrocos. De março a julho, faziam-se muitas armações de atuns («a pescaria deste peixe não só é proveitosa, mas também de muito gosto e desenfado», diz frei João), tudo isto antes do desvio dos cardumes e da crise das pescarias do século XX. Leia-se as páginas imperdíveis de Raul Brandão e de Manuel Teixeira Gomes sobre o copejo e as almadravas. Tradicionalmente, tudo se aproveitava do atum, desde os olhos ao esqueleto, passando pelas ovas secas (mucamas) – pitéu de flamengos. Tempo houve em que o pescado era escoado para Castela através da Andaluzia. Daí ter Sebastião José criado a Companhia das Reais Pescarias (1773) para comerciar o peixe para Lisboa e para o mercado nacional. E em falando de descaminho, a serra tinha o seu quinhão, com os montanheiros ou serrenhos que traziam as madeiras, o mato, a lenha, o carvão, e até o cobre e a prata de Alte e Querença, mas também faziam a caça e extraiam o mel e a cera das colmeias, circulavam as vacas, os porcos e as cabras (daí as cercas de gado pela serra) e mantinham viva a memória das velhas tradições, das mezinhas, das benzeduras e dos romances de mouras e lobishomens. Eis o Algarve e «o seu fascínio depois de alguma busca de paciente iniciação».
NOTA. – Quando escrevi o texto, chegou-me a triste notícia da morte de Urbano Tavares Rodrigues. É uma perda irreparável para as culturas da língua portuguesa. E falando hoje de Algarve, devo lembrar o muito que fez por manter viva a memória do escritor algarvio Manuel Teixeira Gomes…
Guilherme d’Oliveira Martins