A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

«Os Políticos e o Teatro» de Duarte Ivo Cruz (INCM, 2012) fala-nos das incursões de políticos e governantes portugueses nos domínios da dramaturgia. E sabemos bem como a vida política tem muito a ver com a representação teatral – no mais genuíno sentido da palavra. Os Parlamentos são lugares da palavra e os melhores improvisos são os mais bem encenados e mais longamente preparados. Os antigos tratados clássicos de oratória e retórica assemelham-se a cuidadas lições de teatro. Profundo conhecedor da história do teatro, o autor reserva-nos interessantes e curiosas surpresas, que nos permitem conhecer melhor os meandros da nossa cultura dos últimos séculos, desde o grande mestre Almeida Garrett.

A VIDA DOS LIVROS
de 10 a 16 de Junho de 2013


«Os Políticos e o Teatro» de Duarte Ivo Cruz (INCM, 2012) fala-nos das incursões de políticos e governantes portugueses nos domínios da dramaturgia. E sabemos bem como a vida política tem muito a ver com a representação teatral – no mais genuíno sentido da palavra. Os Parlamentos são lugares da palavra e os melhores improvisos são os mais bem encenados e mais longamente preparados. Os antigos tratados clássicos de oratória e retórica assemelham-se a cuidadas lições de teatro. Profundo conhecedor da história do teatro, o autor reserva-nos interessantes e curiosas surpresas, que nos permitem conhecer melhor os meandros da nossa cultura dos últimos séculos, desde o grande mestre Almeida Garrett.




A ESPECIAL ATENÇÃO ROMÂNTICA
A história do teatro começa por ligar o sagrado e o profano, como percebemos com muita nitidez com Gil Vicente, na sua riqueza temática e na transição para o humanismo renascentista, a partir de temas tradicionais marcados ainda pela herança medieval. A abertura ao mundo pelo comércio e pelas viagens ocorre, assim, com as raízes mergulhadas na antiga sociedade rural. Entende-se, pois, que o Romantismo (ao recuperar as tradições medievais) dê uma especial atenção à criação e à representação teatrais. Almeida Garrett é um exemplo marcante. Indo ao encontro das origens da cultura portuguesa e dos mitos nacionais, salienta a importância do teatro como marca e pedagogia, como instrumento fundamental para a formação da consciência nacional e de consolidação do regime liberal. Daí a fundação do Teatro Nacional e do Conservatório Nacional, como Escola de Artes, além da produção de uma dramaturgia que aborda temas cruciais como o amor da Pátria («D. Filipa de Vilhena»), a tradição do teatro («Um Auto de Gil Vicente»), a formação de uma nova sociedade e de uma nova mentalidade («A Sobrinha do Marquês») ou a interrogação do mito sebastianista («Frei Luís de Sousa», em cuja estreia Garrett representou o papel emblemático de Telmo Pais). Pode dizer-se que, tendo cultivado diversos géneros literários, Garrett deu ao teatro uma importância maior, bem evidenciada na consideração da necessidade de ligar educação, arte e cidadania. Também Alexandre Herculano se dedicou à escrita de teatro, sem o mesmo pendor sistemático, mas com objetivos semelhantes – desde um tema frívolo («Tinteiro não é Caçarola», à moda francesa) até outros de sinal patriótico (como «O Fronteiro de África» ou o libreto da peça musicada «Os Infantes em Ceuta»). Não esqueçamos ainda a breve análise histórica da evolução do teatro português em «O Panorama» e a intensa polémica em que Herculano interveio sobre os direitos de autor com Garrett. A lista dos políticos do período romântico com produção dramática é grande e significativa, o que demonstra também a importância dada à atividade teatral na formação da nova legitimidade. António Feliciano de Castilho, apesar de não ter sido governante, teve um papel fundamental na instrução pública liberal e representa a transição entre o classicismo e o romantismo, evidente em «A Liberdade. Tributo Saudoso à Memória do Libertador ou Trânsito da Liberdade».


A LEGITIMIDADE PELO TEATRO
Duarte Ivo Cruz procede a uma análise exaustiva dos intervenientes: Mendes Leal, Ministro dos Negócios Estrangeiros, dedica-se ao teatro histórico e de atualidade, usos e costumes (como em «Os Dois Renegados», «Os Primeiros Amores de Bocage» e «Os Homens de Mármore»); António Serpa Pimental, Primeiro-Ministro, (com seu irmão, José Freire) apesar de escassa obra dramática, não deixa de a cultivar («Casamento e Despacho» e «Dalila»); Andrade Corvo, Ministro dos Negócios Estrangeiros, notável pioneiro na reforma da gestão colonial, dedica-se aos temas da justiça social («Nem tudo o que luz é ouro»); Rebello da Silva cultiva a comédia galante («A Mocidade de D. João V»). Pinheiro Chagas, Ministro da Marinha e Ultramar, escritor multifacetado, alcança um enorme sucesso também no teatro com «A Morgadinha de Valflor» (1869). António Ennes, com papel decisivo na resolução da questão de Moçambique após o Ultimato inglês (leia-se «A Guerra em África», de 1895), tornou-se conhecido como autor teatral consagrado, sendo casado com a célebre atriz Emília dos Anjos. São da sua autoria «Os Lazaristas», «Os Enjeitados», «O Saltimbanco» ou «Um Divórcio». Oliveira Martins também se aventura no teatro com «D. Afonso VI», peça nunca levada à cena. Teófilo Braga dedica-se à historiografia do teatro português e ao teatro histórico («Gomes Freire», «Linda Inês»), escrevendo um libreto para uma ópera de Rui Coelho («O Serão da Infanta»). E, continuando com Presidentes republicanos, Manuel Teixeira Gomes é autor de «Sabina Freire», drama consagrado e conhecido. Mas há curiosidades inesperadas: Oliveira Salazar escreve em toada vicentina «Prólogo para um Auto de Entrudo», além de uma peça histórica («Egas Moniz»). E naturalmente não podemos esquecer os autores com percurso político conhecido: Júlio Dantas escreveu a peça celebrada e muito representada «A Ceia dos Cardeais» (1902) e o argumento de «A Severa» para o cineasta Leitão de Barros (1931); o pedagogo João de Barros dedicou-se ao drama clássico («Anteu», «D. João»); o Prémio Nobel da Medicina e Ministro da Primeira República Egas Moniz é autor de «A Nossa Aldeia»; Ramada Curto dedicou-se ao teatro social (em «Sol Poente» e «Recompensa») e até António Sérgio, na sua ação educativa, usou o método dramático para pôr de pé a expressão do seu pensamento. E, chegando à atualidade, podemos encontrar uma lista não tão numerosa como no século XIX, mas, apesar de tudo significativa – desde «O Magnífico Reitor» de Diogo Freitas do Amaral até ao libreto de Vasco Graça Moura para «Banksters» (sobre «Jacob e o Anjo» de José Régio) ou os seus «Ronda dos Meninos Expostos» e «Auto de Mofino Mendes», passando por David Mourão-Ferreira (com «Isolda» e «Contrabando»), por José Sasportes, em «O Homem que não podia ser Rei», ou por Francisco José Viegas, em «O Segundo Marinheiro»… A concluir, Duarte Ivo Cruz lembra-nos, a propósito: «No teatro, como na arte em geral, o juízo público nem sempre é cronologicamente adequado, pois o artista, mais do que o político, tem o dever de ser um visionário, e de criar para o seu tempo, mas também para o futuro. E isso nem sempre é compreendido». Diferenças e proximidades, ponto e contraponto, os políticos e o teatro permitem-nos pensar no mundo e na vida numa relação biunívoca, com se o tablado e a plateia funcionassem em espelho…


Guilherme d’Oliveira Martins

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