A VIDA DOS LIVROS
de 29 de abril a 5 de maio de 2013
Um dos edifícios emblemáticos do Conselho da UE em Bruxelas invoca o humanista belga Justus Lipsius (1547-1606), muito conhecido e influente no Portugal do seu tempo. Recordamo-lo através da obra de Martim de Albuquerque, «Um Percurso da Construção Ideológica do Estado – a recepção lipsiana em Portugal: estoicismo e prudência política» (Quetzal, 2002).
Os Quatro Filósofos, de P.P. Rubens, 1615 (da esquerda para a direita: o autor e seu irmão, Justo Lípsio e Jan Wowerius – como o busto de Séneca).
ENTRE AUTORIDADE E A OBEDIÊNCIA
Como afirma Martim de Albuquerque, o pensamento de Justo Lípsio balança entre dois polos: a autoridade e a obediência, «como condições de eficácia e estabilidade do poder e a proteção dos governados». A liberdade política resultaria dessa complementaridade e desse entendimento. Muitas vezes, a relativa ambiguidade das ideias do mestre de Louvaina decorre dessa relação complexa. «A construção lipsiana assentou (…) sobre uma ambivalência ideológica, que desenvolveu e explorou a partir da sua cultura antiga, absolutamente ímpar». Tácito e Séneca são dois autores cruciais para o pensamento de Lípsio – em relação ao primeiro no tocante ao conceito de poder e ao seu exercício, e para o segundo quanto à obediência e à defesa dos súbditos. É a partir de Tácito que analisa o conceito de prudência, através do qual pretende ligar a moral e a política, a ética e a utilidade, os valores e a eficácia. Lípsio fica, deste modo, a meio caminho entre a prudência como virtude moral e a prudência como razão de Estado. Assim, «a prudência reconduz-se a uma eleição de meios para agir virtuosamente; é a arte de viver que sabe distinguir o que convém e é útil. Ordena as coisas presentes, prevê as futuras, recorda as passadas». Percebe-se que, assim, a história ocupe um lugar-charneira – articulando o uso, a experiência e a memória das coisas. Se a experiência pode ser mais segura, a memória torna-se indispensável e até preferível, por mais ampla e compreensiva. Impõe-se, porém, para J. Lípsio compreender a tensão entre a virtude e a conveniência. O sentido político obrigaria a fazer concessões ao disfarce: «como o vinho não perde a natureza quando temperado com a água, também a prudência não deixa de o ser se nela existirem algumas gotas de dissimulação ou disfarce». Uma pequena quantidade para um bom fim seria tolerável. Como Plutarco disse em «Lisandro»: onde se não chega a pele do leão é preciso colmatar com a da raposa. Maquiavel vem necessariamente à baila, estando em causa a difícil relação entre a ética e o realismo. E Dante, no inferno, recorre à metáfora da raposa e do leão, para representar o dolo e a nobreza.
DA IMPERFEIÇÃO HUMANA
Justo Lípsio considerava a imperfeição humana e é esse entendimento que o leva a caldear a ética e o interesse. A Tácito vai buscar a prudência, de Séneca retira a constância (tema da sua célebre reflexão publicada em 1584), como perseverança baseada na paciência. O Estado necessita da obediência dos súbditos, o que obriga a prepará-los para uma vida reta e justa. E aí encontramos o estoico: «o estoicismo no puro sentido do estoicismo antigo, do estoicismo senequiano (pergunta Martim de Albuquerque), ou no da compatibilização dos seus ensinamentos com a religião cristã? A pergunta fica no ar, pois se houve quem qualificasse Lípsio como cristão estoico (caso de Quevedo) não faltou quem – tal o juízo de Torrentius – o considerasse mais estoico do que cristão». Lípsio apresenta-nos o modelo de um homem racional, senhor de si, responsável. Politicamente, a personalidade de J. Lípsio é a um tempo ambígua e preocupada com o equilíbrio e a justiça. Daí a sua oscilação entre a Reforma e a Contra-Reforma. Angustia-o a fragmentação religiosa e sente as repercussões negativas da ameaça à estabilidade social. Deseja que a religião seja «vinculum et firmamentum reipublicae». Por isso mesmo, é visto com desconfiança do lado católico e do lado protestante, mas hoje é apontado como um exemplo da diversidade, da dúvida e da Europa como encruzilhada em construção permanente. Disse, por isso, que as «Políticas («Politicorum Libri», 1589) eram feitas com frases soltas de outros autores, juntas ou encaixadas, segundo certa ordem de pensamento, um fio condutor. Afinal, tudo era seu e nada era. Michel de Montaigne viu nessa obra uma tessitura urdida com arte, com sentenças, aforismos, florilégios, citações e espelhos de príncipes… Contudo, nestas reflexões do que se trata é da génese do Estado moderno, com a sua complexidade, como mediador e microcosmos capaz de se fechar e abrir.
INTERROGAÇÕES & PERPLEXIDADES
A vida ativa de Justo Lípsio coincide em parte com a união pessoal entre Portugal e Espanha e com um período especialmente agitado da história europeia, que culminou na Guerra dos Trinta Anos. O autor elenca um conjunto muito significativo de autores portugueses que atestam a receção do pensamento de Lípsio em Portugal – desde D. Lopo Soares, bispo de Portalegre até Soares de Silva, passando por Nuno de Mendoça, futuro conde do Vale de Reis, Luís Mendes de Vasconcelos, Frei Serafim de Freitas, João Pinto Ribeiro, Velasco de Gouveia, António de Sousa de Macedo e D. Francisco Manuel de Melo. A leitura desses testemunhos é muito elucidativa, sentindo-se que apesar de todas as barreiras, havia uma circulação de ideias, que correspondia ao inevitável doce comércio em que a economia e a cultura portuguesa se inseriam. Em Nuno de Mendoça, notamos a amizade do próprio pensador belga, que o considerava moeda do melhor cunho, e um apreciável grupo português de discípulos. Lípsio foi compreensivelmente, desde cedo, objeto de atividade censória, apesar das suas diligências e prudências… Os meios em que J. Lípsio se move e os problemas com que se defronta obrigam a que os seus textos se tornem suspeitos… Frei Serafim de Freitas, no seu «De Justo Imperio Lusitanorum Asiatico» invoca Justo Lípsio, ora positivamente, quanto à prioridade das navegações portuguesas, ora negativamente pela alusão mítica da Atlântida na Antiguidade… D. Francisco Manuel de Melo põe num dos apólogos dialogais, o «Hospital das Letras», Lípsio em conversa com os companheiros: Quevedo, Bocalino e consigo mesmo, colocando-o a dizer: «é bem verdade que a história se quer vestida e revestida de juízos, sentenças, secretos, malícias e discrições, porque enfim uma história nua, sobre desonesta, é desaproveitada». Velasco de Gouveia invoca os argumentos do autor sobre a legitimidade. António de Sousa de Macedo cita o pensador belga sobre o papel das religiões na sociedade. Mas deste repositório fica, sem dúvidas, o Estado moderno a dar os primeiros passos e a sofrer a contradição entre a autoridade e a obediência… Eis a questão.
Guilherme d’Oliveira Martins