A VIDA DOS LIVROS
de 18 a 24 de março 2013
Stefan Zweig (1881-1942) escreveu no exílio, em 1942, «O Mundo de Ontem – Recordações de um Europeu» (Assírio e Alvim, tradução portuguesa de Gabriela Fragoso, 2005), livro fundamental para a compreensão do século XX. Aí diz-nos amargamente: «no período anterior à guerra conheci a forma e o grau mais elevados de liberdade individual e, depois, o mais baixo nível desde há centenas de anos. Fui festejado e proscrito, livre e subjugado, rico e pobre. Todos os lívidos corcéis do apocalipse tomaram de assalto a minha vida(…). Fui à força testemunha indefesa, impotente, do inimaginável retrocesso da humanidade a uma barbárie que há muito pensava esquecida, com o seu dogma consciente e pragmático de anti-humanismo»…
DEMÓNIOS ADORMECIDOS
Há dias Jean-Claude Juncker, primeiro-ministro do Luxemburgo, afirmou que «os demónios da Europa estão apenas adormecidos». A longa história das guerras civis europeias, a lembrança do último século, sangrento e trágico, os riscos de conflitualidade desregulada estão bem presentes e não podem ser esquecidos. E a verdade é que há falta dessa memória nas novas gerações, que pode ter efeitos tremendos. E que riscos são esses que espreitam, perante o acastelar de nuvens negras no horizonte? São a fragmentação, os egoísmos, o tribalismo, o imediatismo, as desigualdades, a harmonização e a desregulação. Tudo isso constitui séria ameaça ao nosso futuro, a que acresce a incapacidade de encontrar valores e interesses comuns, capazes de gerar uma solidariedade de facto eficiente e preventiva. Em meados deste século (lembrava ainda Juncker) a Europa apenas terá 7 por cento da população mundial e hoje mais de 80 por cento do crescimento económico refere-se aos outros continentes que não o europeu. De facto, só a união política, a partir de uma lógica de igualdade e não de exclusão de alguns, poderá contrariar a tendência para a irrelevância europeia. E a verdade é que essa irrelevância europeia porá em causa a paz no mundo.
EM QUE PENSAMOS SOBRE A EUROPA?
Mas de que estamos a falar quando falamos da Europa e do mundo? Estamos a falar de uma história que, há cem anos, em 1913, se anunciava como insuscetível de gerar uma guerra duradoura e sangrenta. Uns afirmavam que as ligações das casas reinantes impediria uma conflagração destruidora, outros acreditavam que o internacionalismo proletário determinaria que os soldados, levados para a guerra pelos impérios se abraçassem, tornando impossível uma carnificina. Ninguém parecia querer ver os perigos. E o certo é que o sonho da «belle époque» terminaria na mais mortífera das tragédias. Mesmo quando a guerra se iniciou em 1914, ainda muitos comentadores insistiam em que seria tudo muito rápido e que dentro de poucas semanas os militares regressariam a suas casas sãos e salvos. O que ocorreu foi o contrário. Quatro anos decorreram com as tropas enterradas nas trincheiras, e houve milhares de mortos na guerra tradicional e na guerra química (para não falar da epidemia da pneumónica que se seguiu). E, depois do armistício de 11 de novembro de 1918, prevaleceu a humilhação dos vencidos – que gerou o ressentimento e a sede de vingança. Em 1919, houve uma espécie de interrupção através de uma paz podre, que depressa reacendeu a tragédia, numa dimensão acrescida, vinte anos passados. Foi uma nova guerra dos trinta anos, que findaria em 1945 com a bomba atómica. E, como lembrou há dias o Prof. António Barbosa de Melo, em Coimbra, Jacques Maritain, num texto profético de 1939, disse que só uma união de esforços na Europa teria evitado o desastre, desde que houvesse recusa de humilhações e submissões. O certo é que não podemos ignorar a história política – e esta aponta para a necessidade de uma lógica federalista séria (não confundível com um super-Estado), exigindo partilha de responsabilidades, subsidiariedade e respeito intransigente pela diversidade das culturas.
PAZ, DESENVOLVIMENTO E DIVERSIDADE
Jacques Delors tem, por isso, insistido em três objetivos fundamentais da União Europeia, hoje: a criação de um espaço de segurança e de paz, a salvaguarda do desenvolvimento sustentável e a preservação da diversidade cultural. E não tenhamos dúvidas: estas são preocupações de sobrevivência. Eis por que razão a União Europeia não pode contentar-se em ser uma construção artificial – como o foi a antiga Jugoslávia, que implodiu quando desapareceu a liderança que a susteve. Não esqueçamos que a Confederação Helvética pôde manter-se porque preservou mecanismos que conciliam a coesão e a diversidade. E quando, no discurso de Zurique, Winston Churchill falou de uma espécie de Estados Unidos da Europa, teve a premonitória noção (não compreendida por muitos ainda hoje) de que os egoísmos nacionais teriam de dar lugar a uma solidariedade essencial, com salvaguarda das diferenças. O Congresso da Haia (1948) afirmou-o com clarividência. Estava bem presente a lembrança da tragédia da guerra. Essa memória torna-se agora longínqua, quando regressa o caminho perigoso da fragmentação. Impõe-se compreender que há instâncias de mediação que têm de ser preservadas – como defendeu Denis de Rougemont. Da defesa e segurança ao meio ambiente; da resposta à crise financeira à coesão económica e social – impõe-se defender os interesses vitais comuns. Robert Schuman, Jean Monnet, Alcide De Gasperi, Konrad Adenauer, P. H. Spaak pensaram e construíram as bases de uma nova legitimidade, assente nas solidariedades de facto. E Jean Monnet nunca disse que se fosse para recomeçar pegaria na cultura. Não que a cultura não seja fundamental, mas porque aí estamos no domínio por excelência das diferenças e das complementaridades – não das convergências funcionais. Afinal, o que tem mais valor é o que não tem preço, e as diferentes identidades têm de ser preservadas, como elementos de respeito, de consideração e de abertura.
QUE CONDIÇÔES PARA A PAZ?
E, falando de Paz, temos de referir as soberanias limitadas a que alude a Carta das Nações Unidas, bem como a partilha de soberanias do método comunitário europeu, com a soberania originária dos Estados membros e a soberania derivada da União Europeia – e sobretudo da dupla legitimidade europeia, dos Estados e dos cidadãos. Daí a necessidade de um Senado europeu, onde todos os Estados estejam representados igualmente, do mesmo modo que a subsidiariedade tem de dar mais importância aos parlamentos nacionais e à sua representação cidadã. O «patriotismo constitucional» europeu, de que fala Habermas, corresponde, assim, à exigência da liberdade e da igualdade, da igualdade e da diferença. Os cidadãos europeus têm de participar e de se sentir representados. Há, assim, uma legitimidade e uma legitimação que têm de ser preservadas na Europa. A queda do muro de Berlim mudou o panorama mundial em 1989, Maastricht abriu caminho à moeda única, mas a estabilidade de preços prevaleceu sobre o pleno emprego, a reedição do «fim da história» foi uma ilusão momentânea, a Convenção para o Futuro da Europa e o Tratado de Lisboa ficaram aquém do desejável, apesar dos avanços formais, mas a crise financeira constituiu-se elemento decisivo para avançar ou cair. Barack Obama parece compreender o essencial ao propor uma parceria euro-atlântica, como outrora Kennedy e Monnet, até porque o sistema mundial de polaridades e perigos difusos aconselha à prevenção. Tudo está em metamorfose, na expressão de Edgar Morin, e a enfermidade financeira é altamente transmissível através de uma mutação genética com consequências na instabilidade política e na legitimidade democrática. A verdade é que não podemos esquecer Stefan Zweig e as suas memórias. Nada do que julgamos adquirido o é: democracia, liberdade, segurança, Europa… «Quando tento encontrar uma fórmula prática que descreva a época na qual cresci (diz Zweig), a época que antecedeu a Primeira Guerra Mundial, penso ter encontrado a mais precisa se disser: foi o período áureo da segurança. Tudo na nossa democracia austríaca quase milenar parecia construído para durar sempre, sendo o próprio Estado o garante supremo dessa estabilidade». E, no entanto, tudo caiu, de um dia para o outro, como um baralho de cartas, perante a indiferença quase geral…
Guilherme d’Oliveira Martins