A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

«Princípios de Filosofia ou Monadologia» de Gottfried Wilhelm von Leibniz (1646-1716) (tradução, introdução e notas de Luís Martins) (INCM, 1987) é uma das obras-primas da filosofia europeia, caracterizando-se pela sua clareza e concisão, algo enganadores sobre a respetiva simplicidade. Apesar da complexidade trata-se de uma síntese notável sobre o pensamento do autor.

A VIDA DOS LIVROS
de 24 a 30 de Dezembro de 2012



«Princípios de Filosofia ou Monadologia» de Gottfried Wilhelm von Leibniz (1646-1716) (tradução, introdução e notas de Luís Martins) (INCM, 1987) é uma das obras-primas da filosofia europeia, caracterizando-se pela sua clareza e concisão, algo enganadores sobre a respetiva simplicidade. Apesar da complexidade trata-se de uma síntese notável sobre o pensamento do autor.



GRANDE RIQUEZA DE REFLEXÃO
Leibniz é um dos autores do pensamento europeu que apresenta uma das mais extraordinárias riquezas na sua reflexão. A sua biografia é disso uma demonstração inequívoca. Nascido numa família de tradições jurídicas do lado paterno e materno, desde cedo estudou os autores clássicos, escolásticos e modernos – conhecendo profundamente a evolução das ideias do seu tempo, o que lhe permitiu desenvolver um apurado pensamento crítico. Com apenas 17 anos declara-se nominalista, a propósito do estudo sobre a individualização. Na Universidade de Iena estuda metafísica, jurisprudência e matemática, iniciando os estudos sobre o cálculo diferencial. A lógica matemática atrai-o especialmente, o que se manifesta com nitidez nos estudos que culminarão em «De Arte Combinatoria». Procura, assim, adaptar as combinações lógicas às decisões da jurisprudência, usando um método extremamente original, revelador de grandes qualidades intelectuais. Junto do Barão de Boinebourg, antigo Conselheiro privado do eleitor de Mogúncia (Mainz) convertido ao catolicismo, desenvolve estudos sobre química, mas também sobre política e direito. Reedita uma obra do século XVI de Marius Nizolius profundamente crítica do pensamento escolástico, apesar de estabelecer algumas distâncias críticas. Entretanto, preconiza a unificação dos estados alemães, preocupando-se também com a segurança europeia. Espírito desperto e irrequieto, estuda aprofundadamente os mais recentes avanços da lógica matemática, admirando Pascal e propondo audaciosos avanços nesse domínio. Mais do que pelo ensino, é atraído pelo contacto com pensadores e matemáticos e com governantes e diplomatas. Daí a extrema versatilidade dos seus escritos e pensamentos. É notável vermo-lo na passagem dos anos 60 para 70 descrever uma nova máquina de calcular (com quatro operações, mais avançada do que a de Pascal), propor um novo sistema eleitoral para a Polónia, escrever sobre física e matemática, realizar estudos de teologia sobre o dogma da transubstanciação e da presença real na eucaristia. Em Paris (1672) tenta influenciar Luís XIV para a conquista do Egito, em Londres apresenta na Royal Society a máquina de calcular (1673). De novo em Paris, conclui os estudos sobre o cálculo diferencial e mantém uma intensa reflexão teológica. Em 1776, aceita o cargo de Bibliotecário em Hanôver, na Casa do duque de Brunswick-Lünebourg e é nesse mesmo ano que conhece Bento Espinosa, de passagem pela Holanda – e discute com ele criticamente as conclusões de Descartes, encontrando pontos de contacto com o seu pensamento. Embrenha-se na investigação histórica sobre a Casa de Brunswick e consegue chegar a conclusões importantes que fazem luz sobre a história da Mitteleuropa e sobre as pretensões políticas do Senhor para quem trabalha.


A RECONCILIAÇÃO RELIGIOSA
Preocupa-se então com a necessidade de reconciliação entre as igrejas católica e protestantes, fazendo inúmeros contactos e propostas concretas. Escreve-se com Bossuet e com outros prelados, com o Bispo Rojas de Spínola. É este o tema que o ocupa sobremaneira. A teologia que estuda e pratica confunde-se com a filosofia e metafísica. A religião deve fundar-se na razão, e Leibniz considera haver mistérios e verdades reveladas, no entanto se não podemos explica-las é porque a nossa lógica e as nossas línguas são imperfeitas. Razão e fé encontram-se necessariamente, e o certo é que a oposição entre católicos e protestantes resultaria mais de um espírito de grupo do que de uma diferenciação profunda de dogmas e crenças. Contudo, o diálogo com Bossuet torna-se muito difícil, uma vez que este fala sobretudo de um «regresso» dos protestantes e não de um diálogo ou entendimento, o que gera resistências e incompreensões. É ainda em Hanôver que produz as principais obras filosóficas, designadamente as anotações à Ética de Espinosa. Mantem-se, porém, como um incansável investigador em bibliotecas e arquivos. Depois da morte de Jean-Frédéric de Brunswick mantém as mesmas funções com Ernest-Auguste. Empenha-se em diversas negociações diplomáticas, rompe com a filosofia cartesiana, realiza viagens para compilar documentos sobre as pretensões políticas da Casa de Brunswick. Obtém uma importante vitória ao ver reconhecida em 1692 a qualidade de Eleitor para o o Duque Ernest-Auguste, que é o pai de Jorge I, que se tornará rei de Inglaterra, iniciando a dinastia de Hanôver. Em Itália Leibniz é eleito membro da Pontifícia Academia Físico-Matemática de Roma. Respeitado em toda a Europa, escreve «Système Nouveau de la Nature et de la Communication des Substances ainsi bien que de l’Union qu’il y a entre l’âme et le corps». Usa pela primeira vez o termo «mónada».


A IMPORTÂNCIA DA MONADOLOGIA
«A Mónada não é outra coisa senão uma substância simples, que entra nos compostos; simples quer dizer, sem partes». Uma mónada é uma força irredutível que dá aos corpos as suas características de inércia e impenetrabilidade, contendo em si mesma a fonte de todas as suas ações. Por este tempo, é nomeado membro da Academia das Ciências de Paris (1699), fundando, no ano seguinte, em Berlim, a Sociedade de Ciências (depois Academia). Publica obras fundamentais como «Considérations sur la doctrine d’un esprit universel unique» e «Nouveaux Essais sur l’Entendement Humain», em que contesta a tese de John Locke sobre a «tábua rasa», defendendo a teorias das ideias inatas. Continua, todavia, preocupado com a organização da sociedade alemã, centrada no espírito e na língua, mas também pensa na organização intelectual de toda a Europa. Estuda e propõe reformas para a Rússia, colocando muitas esperanças na modernização empreendida por Pedro, o Grande. «Desde a minha juventude, o meu grande objetivo foi trabalhar pela glória de Deus, pelo crescimento das ciências que marcam melhor o poder, a sabedoria e a bondade divina. O país onde as ciências forem mais florescentes ser-me-á mais caro, pois que o género humano aproveitará disso mesmo». Os últimos anos de vida de Leibniz, após a morte da sua admiradora e protetora a Princesa Sofia de Hanôver, viúva de Ernest-Auguste e neta de Jaime I de Inglaterra e mãe do futuro rei Jorge I, foram de esquecimento e indiferença. Parte significativa da sua obra ainda era desconhecida, em especial a relativa à teoria do conhecimento. As suas prosas divulgadas eram de natureza circunstancial. Mas, ao lermos «Princípios de Filosofia ou Monadologia» sentimos a originalidade e a consistência do seu pensamento na ligação entre a conceção das mónadas e a visão do mundo, em especial através dos princípios da razão suficiente e da não-contradição, bases do otimismo metafísico, «princípios que asseguram a existência de ordenação na complexa e infinita rede de compossibilidade lógica». Por outro lado, a ligação vinculativa com o corolário teórico exprime a «necessidade ética e metafísica da criação, é o princípio do Melhor, porque Deus estabeleceu a necessidade hipotética como fundamento moral da criação do mundo» (como no-lo ensinou Fernando Gil). A ideia de vivermos no melhor dos mundos possível (“dotado de maior variedade de fenómenos com base no menor número de princípios”) parte de uma perspetiva de conjunto que procura dar coerência à realidade e à vida. Como diz o filósofo: «Esta Cidade de Deus, esta Monarquia verdadeiramente universal, é um Mundo Moral no Mundo Natural e o que de mais elevado e de mais divino existe nas obras de Deus, pois que não a haveria se a sua grandeza e a sua bondade não fossem conhecidas e admiradas pelos espíritos; e é também relativamente a esta cidade divina que há propriamente Bondade, ao passo que a sua Sabedoria e a sua Potência se manifestam por todo o lado» (86).


Guilherme d’Oliveira Martins

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